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Análise: O Exorcista (1973)

 

Na década de 70 o gênero terror se tornou super popular e com produções inovadoras que, na maioria dos casos, tentavam sair dos velhos estereótipos do gênero criando narrativas que se utilizavam tanto do terror psicológico quanto do sangrento. Cineastas como Wes Craven, David Lynch, John Carpenter e Brian de Palma foram tremendamente influenciados pela obra clássica Psicose, de Alfred Hitchcock, O Bebê de Rosemary, filme de horror de Roman Polanski que abriu as portas para filmes do gênero com uma temática religiosa, além da Nouvelle Vague francesa, na criação do tom de suas narrativas. Tais artistas se muniram de questões políticas e sociais e as utilizaram em seus filmes a partir de alegorias visuais e temáticas, como é o caso desta obra fascinante de William Friedkin. Uma obra que discute a existência de Deus e a personificação da “rebeldia” e “transgressão” da juventude da época, segundo certos valores sociais, num caso de uma garota inocente possuída pelo demônio (O Exorcista) , a partir da disputa do “Bem contra o Mal” e de uma história sobre possessão demoníaca.

                

A partir de filmes que copiavam ou tentavam recriar a dinâmica do filme Halloween, os filmes “Slasher” mais tarde se popularizariam pela grande quantidade de violência gráfica na tela e por incorporar seus assassinos quase como os “carrascos sociais”, aqueles que matam os adolescentes que bebem e fazem sexo enquanto a mocinha virginal salva o dia. Filmes como O Exorcista partiram para uma abordagem de dinâmica diferente com tais aspectos, sendo assim evidente o estabelecimento de clichês do gênero nesses filmes, no exorcista, por exemplo, existem as hoje recorrentes cenas de: iluminação que falha, telefone que toca, mas não responde à comunicação do protagonista, “rostos” que surgem na escuridão além do velho porão/sótão que o protagonista vai investigar sozinho… Qualquer um que já assistiu filmes de terror hoje em dia sabe que pelo menos um desses elementos está presente nas obras atuais. Além disso, a forma com que o terror psicológico presente na obra de Friedkin é empregado em consonância com temas sociais da “realidade” possui influencia palpável nos posteriores “O Iluminado” e “O Babadook” (uma obra deste ano que não deveria ser ignorada).

E quando falo de alegorias e metáforas sociais, estas são extremamente imaginativas e bem construídas e estão muito bem representadas nas figuras da jovem Regan (Linda Blair) na do padre Karras (Jason Miller) e na dos médicos que examinam a pequena garota.

Começarei com o sofrido personagem de Jason Miller, o padre Damien Karras. Este jovem padre é um ex-boxeador e psicólogo que está com sua mãe doente enquanto vê sua fé se diluir a cada aconselhamento que faz a padres desesperados que se encontram na mesma situação que ele. A verdade é que Karras é um ser que parece a todo o momento cauteloso, culpado, ansioso, exatamente como uma pessoa que perdeu algo e que agora não sabe como retomar (afinal de contas fé é simplesmente uma questão de… fé. Acredite: sim ou não), algo muito bem salientado pela performance de Jason Miller que compõe o padre como um homem de ombros caídos como se carregasse o mundo em suas costas ou como numa postura de defesa de um boxeador . Damien confessa que perdeu a sua fé em um bar, bebendo cerveja, enquanto jovens enchem o lugar com um Rock tocando ao fundo, Fridkin claramente fez uma sátira nessa cena ao colocar um “homem de Deus” negando a sua fé enquanto jovens da década de 70 bebem e desfrutam da “música do demônio”, a idéia aqui era fazer um paralelo da visão conservadora em relação à liberdade sexual, muito debatida na época, com a perversão da juventude.

                 

Tal visão de que os comportamentos dos personagens estariam refletidos em questões de debate da época ganha peso ainda quando analisamos a postura dos médicos que examinam Regan. A todo o momento as maiores preocupações deles se voltam para o questionamento de se a menina usa ou não drogas e alguns dos sintomas que geram preocupação são questões pequenas levadas a níveis extremos: como falar palavrões, fazer insinuações sexuais e mostrar certa agressividade. Assim, é angustiante perceber como os médicos sempre se voltam a uma área diferente do cérebro, tentando sempre postergar a entrada da psiquiatria no caso, tratando os problemas da pequena Macneil como operacionais e de falhas sistemáticas, indo com relutância para uma avaliação psicológica e, mais tarde, para o exorcismo. Além disso, é muito incomodo perceber que Friedkin filma o tratamento de Regan como um ato “sexual” contra a vontade da garota.

  

Juntando tais perspectivas sexuais e de fé caminhamos para a simbologia presente na pequena Regan Macneil, uma filha de pais separados (sendo o pai uma figura extremamente ausente) e que começa a demonstrar sinais de mudança após brincar com um tabuleiro de Ouija. Regan começa a gerar preocupações em sua mãe, Chris Macneil (Ellen Burnstyn em desempenho sensacional), após “mentir” dizendo que sua cama estava tremendo e demonstrar hiperatividade. Mentalmente e fisicamente a garota se transforma ao longo da projeção e seus problemas vão aumentando até certo ponto que a personalidade da garota parece totalmente tomada por uma criatura que se apresenta como o próprio demônio. Um aspecto muito interessante de se notar é o fato de que todas crises de Regan começam na cama, em sua intimidade, seja com esta tremendo, com seus ataques de fúria sexuais ou verbais. Algo que culmina em uma cena extremamente forte e polêmica na qual a garota se masturba o com um crucifixo até sangrar, o que, segundo os criadores do filme, simboliza a perda da virgindade da menina a partir da subversão de um símbolo de “luz” em “trevas”, sendo o seu corpo, a partir daí, completamente tomado pelo “mal”.

    

Juntando todos esses elementos temos no filme um debate maravilhosamente bem estabelecido entre os problemas de Regan serem realmente demoníacos ou consideradas “falhas sociais e psicológicas” que ao se agruparem transformam a garota. Note, por exemplo, que Friedkin nunca utiliza uma ação demoníaca da garota sem demonstrar a reação de outro personagem antes, como na famosa cena em que a cabeça da menina gira 360º, mas que nós nunca a vemos por completo, no meio do movimento há um corte de cena para o rosto dos padres e quando volta para a garota o giro está se completando, estabelecendo assim aqueles acontecimentos a partir dos olhos dos outros personagens e não, com toda a certeza, reais.

                                                                         

Chegamos assim na sequencia final que deveria estar na lista dos maiores terceiros atos da história do cinema, tamanha a sua força. Nele temos uma discussão maravilhosa da existência de Deus e de seu papel perante aos homens a partir da existência do demônio e de sua tentação. A cena com a chegada do padre Merrin (Max Von Sydow sempre imponente) se tornou um clássico da cultura pop e é a partir desta cena que temos o fechamento da história. No terceiro ato temos a libertação da garota e uma luta entre o “Bem” e o “Mal”, mas afinal de contas o Bem triunfou sobre o mal? O que moveu a derrota do demônio foi a força divina ou a ação humana do padre Karras? Padre Merrin perde a batalha quando utiliza dos poderes de Deus, mas Karras vence ao ser usado como “sacrifício”, tal sacrifício foi divino ou força de vontade humana? Como se vê, o filme cria uma discussão não nos fornecendo as respostas, o que aumenta e muito a força deste clássico. Ao filme caminhar para o fim temos dentro de cada um de nós uma impressão diferente quanto a tudo aquilo que vimos nas ultimas duas horas de filme.

                       

Em uma época de usos experimentais de drogas, protestos estudantis (presentes no filme que a personagem Chris Macneil está gravando), e questionamentos de autoridade, o filme faz com que sintamos na pele a punições horríveis aplicadas à “rebelde” Regan. Tudo é colocado de forma minuciosa para que a as questões sexuais, juvenis, sociais, políticas e psicológicas trabalhem em consonância com o drama dos personagens cercados pelo terror. Assim, não posso deixar de aplaudir as decisões estilísticas de William Friedkin para o filme. A fama deste diretor é lendária como um homem um tanto quanto muito louco, já que parte da idéia de gerar raiva de seus atores para conseguir interpretações mais vívidas, mas tenho que admitir que tudo é muito bem orquestrado pelo diretor, seja nas cenas já comentadas clichês hoje em dia ou sobre a forma como apresenta os surtos de Regan, como também ao traçar o paralelo entre as escavações que liberam o demônio Pazuzu e a casa dos Macneil apenas pelo Sol e uma lâmpada, dando a entender que aquela criança foi escolhida de uma forma quase aleatória, ela seria só um símbolo de pureza a ser destruído, ou de que a possível relação entre os dois momentos é mínima indo de encontro a interpretação de cada um.

                                              

Sempre me deparo com pessoas que criticam o exorcista dizendo ser um filme ultrapassado, que não gera terror de verdade. O que eu aconselho a cada um é tentar entender este filme em função de sua época. Estamos falando dos anos 70, a década de 60 já havia deixado a sua marca, Beatles haviam apoiado as drogas psicodélicas, o verão do amor de 67 revolucionou a cultura pop musical, os protestos de 68 haviam se espalhado pelo mundo gerando até uma famosa reação do boicote ao festival de Cannes, questões feministas e de liberdade sexual estavam em debates fervoroso… E os anos 70 chegaram com força experimental total. No cinema a nova Hollywood estava por cima, nas palavras de Martin Scorsese: “… foi quando estvam em cena os chamados contrabandistas…” aqueles cineastas, inspirados pela Nouvelle Vague e pelo neo-realismo italiano, que contrabandeavam para a tela os problemas da sua sociedade. Foi a época de O Poderoso Chefão e sua metáfora dos Estados Unidos do pós guerra, deNashville e sua simbologia sobre a cultura Estadunidense em sua decadência moral e Taxi Driver com sua abordagem sobre a loucura da sociedade após a guerra do Vietnã.

                                                   

O Exorcista é um filme que estabeleceu os parâmetros do gênero, que dialogou com o seu tempo, que gera debates cinematográficos até hoje, que possui cenas que qualquer um conhece só de olhar de relance e que ainda por cima possui, sim, muitos momentos tensos. Se isso não é sinônimo de eterno clássico eu realmente não sei qual é.

                                                                                   

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