It – A Coisa

IT – A Coisa
(IT)
Data de Estreia: 07/09/2017
Direção: Andy Muschietti
Distribuição: Warner Bros.

Geralmente, as críticas do RdM não referenciam a qual gênero o filme se enquadra… por motivos óbvios. Mas desde o momento em que saí da sala de cinema desta nova versão de “IT – A Coisa”, sabia que esse deveria ser um alerta para todos os fãs do terror que estão ansiosos pelo lançamento. O motivo é simples: o longa adaptado da famosa obra de Stephen King abre mão de assustar o espectador para aterrorizar seus personagens – sendo mais do que certo que até mesmo o IMDB categorize o filme como um Drama/Horror. Pennywise pode não ser muito efetivo em assombrar a plateia, mas o medo que sentimos quanto ao destino dos personagens demonstra o cuidado ambicioso da película para com o lado humano da projeção, estabelecendo a dinâmica dos personagens, caracterizando-os bem e criando uma narrativa rica e admirável no processo.

Construindo um belo exemplo de adaptação de um livro (tanto no que o filme utiliza quanto o que ele descarta), “IT” tem um começo excepcional com a sequencia do desaparecimento do garotinho Georgie, com uma abordagem que não só dá o tom que o filme seguirá como também funciona por si só como um choque inicial para cima do espectador que se vê preso numa cena brutal, esbanjando um gore em planos claros e mais abertos. Se por um lado esta primeira cena já demonstra uma fraqueza de todo o filme (seus efeitos especiais abaixo da média), por outro o impacto dramático que esta causa é mais do que conveniente para que sintamos os caminhos mais “adultos” que o filme deseja cursar (mesmo que seja protagonizado por crianças, que por sua vez são assombradas por um palhaço).

Inclusive, esse tom mais obscuro ajuda o filme quando, logo de cara, palavrões saem freneticamente da boca dos adolescentes e crianças do filme, soando não apenas uma gracinha ou um alívio cômico fácil (ainda que funcione muito bem neste sentido), mas trazendo uma carga de realismo palpável nas conversas daqueles garotos que estão descobrindo sua sexualidade agora e acabam relacionando qualquer xingamento a aspectos sexuais – não são crianças soando como crianças de um filme, mas sim pré-adolescentes reais que agem e falam como os adultos a sua volta se expressam. Contudo, o filme toma o cuidado de plantar ali palavras, curiosidades e dúvidas puramente infantis, fazendo com que os diálogos soem mais naturais, ainda que peculiares.

Neste sentido, há um incrível balanceamento entre todos os integrantes do “Clube dos Otários”, que tem em cada um de seus personagens uma caracterização precisa, que o filme executa tão bem que mesmo dias depois do fim da sessão ainda consigo imaginar a reação de cada uma das crianças em situações diversas. Desde a liderança obstinada (e justificada) de Bill (Jaeden Lieberher), à solidão palpável de Ben (Jeremy Ray Taylor), passando pela posição de constante alerta de Mike (Chosen Jacobs) – advinda de uma clara noção da sua realidade no local por ser negro -, até chegar à hipocondria exagerada e divertida de Eddie (Jack Dylan Grazer muito bem dosado e carismático) e à insegurança/medo, de nascente religiosa, de Stanley (Wyatt Oleff), temos a plena percepção da carga de vida de cada um destes personagens, que, bem interpretados na maior parte do tempo, ainda acabam sendo um pouco ofuscados pelas performances Finn Wolfhard e Sophia Lillis como Richie e Beverly, respectivamente.

O Richie de Wolfhard é uma verdadeira proeza do ator que, ainda que precise evoluir em carga dramática um pouco, volta a demonstrar o mesmo carisma apresentado em “Stranger Things”, porém com um personagem infinitamente mais difícil, já que seus constantes palavrões, alusões sexuais e provocações poderiam tornar Richie uma figura antipática (o que quase acontece), mas o ator mirim nunca perde o controle de seu personagem. Enquanto isso, Sophia Lillis constrói a personagem com arco de maior potencial dramático e trágico em sua história de vida, estabelecendo Bev como uma figura jovial, inteligente e que mesmo nos momentos de maior força demonstra uma fragilidade emocional proveniente de abusos ao longo de sua vida – soando ainda completamente pertinente para as nuances dramáticas do filme, mas eu volto nisso mais tarde.

O que nos leva ao palhaço Pennywise e como este aterroriza nossos protagonistas. Se em essência a ideia de apresentar o medo de cada um dos personagens é mais do que bem-vinda, já que assim podemos nos importar de verdade com as figuras que passam na tela, a estrutura do roteiro peca ao apresentar uma série de medos da primeira metade dos personagens, desenvolver outro tanto do drama destes e então apresentar o medo da outra metade dos protagonistas, inchando a narrativa principalmente em seu segundo ato – mas, ainda assim, eu não cortaria nada do roteiro, só buscaria rearranjar melhor algumas sequencias para desenvolver um ritmo melhor à narrativa. Por outro lado, o visual de Pennywise é eficiente ao deixar claro o tom malévolo da criatura principalmente graças a performance eficiente de Bill Skarsgård, que mesmo refém de uma figura com pouco desenvolvimento em si, já que é uma espécie de entidade que se alimenta do medo, acaba por depor a favor ao tom do filme.

Ainda nesse sentido, as decisões narrativas do diretor Andy Muschietti para desenvolver as sequencias do palhaço se mostram peculiares: por um lado, há uma completa coesão narrativa na linguagem do filme, com Muschietti estabelecendo elementos que denotam que o momento de medo está por vir, seja pela trilha sonora, pela mixagem de som, ou pelo enquadramento em plano-holandês (a câmera se inclina de 25 a 45 graus); por outro lado, estes elementos podem cansar o espectador ao longo das 2:15 de duração, já que até mesmo o artifício de aproximação de Pennywise, que parece se debater enquanto se aproxima da vítima, se desgasta. A questão é que, ainda que desgastados, todos esses elementos soam completamente coerentes com a proposta do filme, já que este procura um tom de “Stranger Things” para maiores, em que o vilão da história é uma extensão temática dos problemas dos protagonistas, e não o problema geral em si.

Essa riqueza dramática em seus temas se dá pelo fato de que o roteiro de Chase Palmer, Cary Fukunaga e Gary Dauberman sabe aproveitar bem as nuances de um “coming-of-age” (perspectiva de “amadurecimento” dos personagens) que a estória de Stephen King propõe, trazendo em seu centro a perspectiva de uma cidade em que adultos podem se mostrar os grandes vilões sejam por suas atitudes ou por suas completas apatia e indiferença. Assim, é sintomático que cada uma das crianças tenham suas questões parentais desenvolvidas no decorrer da estória, já que estas representam o medo delas e pontuam até mesmo questões quanto a sexualidade aflorando nos pré-adolescentes.

(E SUGIRO QUE PULE OS PRÓXIMOS DOIS PARÁGRAFOS CASO NÃO TENHA VISTO O FILME)

Nesse sentido, Beverley é a que chama mais atenção nos claros abusos sofridos pelo pai que a infantiliza em sua repressão possessiva, sendo que a metáfora de um banheiro ensanguentado é rica por trazer dois aspectos principais: o primeiro é o claro subtexto de primeira menstruação que a cena possui (uma metáfora de transformação de “garota” em “mulher” que King já havia utilizado em “Carrie”), já que o medo que Pennywise se apropria em Bev está ligado ao subtexto sexual do pai da garota, sendo um verdadeiro toque de gênio o fato de que os amigos da garota a ajudam a limpar o banheiro, já que estes a conheceram justamente no momento em que ela comprava um pacote de absorvente – além do fato de que é no banheiro que ela se tranca para ler um poema enviado por Bem, corta seus cabelos tocados pelo pai e finalmente consegue enfrentar este.

Em outros momentos podemos ver a pressão dos pais quanto aos demais protagonistas, como no conformismo dos pais de Bill quanto à morte de Gerogie, a morte trágica dos pais de Mike (e também a maturidade pragmática que seu avô cobra dele), o medo hipocondríaco de Eddie vem de sua mãe controladora, enquanto o Bar mitzvah de Stanley (o momento no qual ele virará homem segundo sua religião) é o verdadeiro pesadelo do garoto que tem um pai rabino, sendo realmente peculiar que só conheçamos o quarto de Bem (o que alerta ainda mais para a solidão deste) e como nunca vemos nada do cotidiano de Richie em casa, algo que se reflete na forma mais aberta e forçada com que o garoto encara suas referências sexuais. Até mesmo o vilão da história, Henry, possui em seu pai o símbolo de ciclo de violência… Os desdobramentos são tão ricos que realmente fico aliviado do filme não ter utilizado das sequencias de masturbação ou do sexo entre os membros do “Clube dos Perdedores”, já que, além de mau gosto, apenas martelariam a mensagem para o espectador.

No fim das contas, “IT: A Coisa” pode ter dois caminhos para quem o assiste: ou irá se encantar com a precisão do drama dos personagens, ou se incomodar com a natureza mais rasa das sequencias de “terror” na tela. Da minha perspectiva, é evidente que que este é um longa com defeitos, mas suas qualidades são tão grandes que quando a sessão termina, a vontade é de imediatamente rever o filme e tentar descobrir mais como os dramas da vida real podem também ser muito assustadores.