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A obscura natureza do ser humano em O Silêncio dos Inocentes

Os demônios de Clarice e os trajes sociais

De uniforme todo branco, o Dr. Lecter continua a análise iniciada em Baltimore que auxilia a jovem estagiária do FBI, Clarice Starling, na captura do assassino em série que tanto procura, adentrando cada vez mais nesse terreno e trazendo à tona seus anseios inexplorados. Metaforicamente presa a uma jaula criada ainda na infância devido à morte prematura de seu pai, ela mergulha na “sessão de terapia”, permitindo que o psiquiatra a conheça, sem notar que está sendo analisada e, aos poucos, ele lhe mostrará a chave que a permitirá libertar-se . Assim como Clarice, o Dr. Lecter também objetiva sair da sua própria prisão, que não é metafórica, e “sair” talvez seja uma definição errônea, quando o correto poderia ser “fugir” enquanto está em Memphis. E ele tem sua própria “chave” para isso.

Tendo acompanhado de perto toda a empreitada do FBI no desenvolvimento do estudo comportamental de criminosos, o ex-repórter policial Thomas Harris publicou alguns romances, o primeiro intitulado Domingo Negro (G. P. Putnam’s Sons, 1975), levado para o cinema por Ernest Lehman, Kenneth Ross e Ivan Moffat. Em seguida, Michael Mann adaptou Dragão Vermelho (G. P. Putnam’s Sons & Dell Publishing, 1981) sob o título Caçador de Assassinos, em 1986. Mas a transposição de maior sucesso foi a de O Silêncio dos Inocentes (St. Martin’s Press), livro lançado em 1988 que teve seus direitos adquiridos pouco tempo depois. Assumindo a cadeira de roteirista, Ted Tally apresenta Clarice Starling, uma exemplar aluna que está em treinamento no FBI para se tornar agente, quando seu superior Jack Crawford, responsável por liderar entrevistas com assassinos, a envia ao encontro do assassino em série Dr. Hannibal “O Canibal” Lecter, visando extrair informações que ajudem o FBI na captura de outro, Buffalo Bill. Clarice mergulha de cabeça na perigosa tarefa a qual foi designada.

Construindo a narrativa por meio de homens duros e cruéis, o roteiro traz em sua linha de frente uma mulher decidida, Clarice, em sua jornada de quebra do estigma do ultrapassado e sempre preconceituoso termo “sexo frágil”. Em busca de reconhecimento profissional, mas mais ainda, em busca de si mesma, ela é constantemente julgada pelos olhares desconfiados dos homens. Jodie Foster confere à sua personagem grande profundidade não só ao evocar os dilemas enfrentados quando criança, mas ao transpor tamanha bagagem emocional a qual tenta canalizar a todo custo. O silêncio de seus cordeiros é ensurdecedor e, cada vez que o espectador conhece um pouco mais de sua história, mais se envolve e torce por seu sucesso.

Ao conhecê-la, Lecter nota uma mulher forte e determinada, mas que ainda precisa buscar um ponto de equilíbrio. A cena em que não tenta farejar seu sexo (como Migs), mas a sua essência, transparece as intenções dele, que não a vê como uma presa prestes a ser abatida, mas como alguém que precisa de um guia. Consequentemente, ele exercerá forte influência sobre ela e símbolo disso é o que ocorre em situações distintas, no início e ao fim do filme, quando a primeira e última aparições de Clarice a contrapõem, encarando os desafios do treinamento e terminando acuada após um telefonema.

 

 

 

 

 

 

 

 

O design de produção de Kristi Zea em parceria com seus decoradores de set, Karen O’Hara e Tim Gavin, é um dos pontos altos do filme, expondo a dor que o pai da primeira vítima, Frederica Bimmel, sente ao manter intacto o quarto da filha como recordação, subvertendo logo a seguir o ambiente caótico da casa ocupada por Buffalo Bill. Enquanto isso, a sala de Crawford em Quantico, repleta de fotos das vítimas de Bill nas paredes, se assemelha à cela de Lecter em Baltimore, onde também preenche as paredes de pedras com pinturas feitas por ele, incluindo a do Duomo em Florença, vista do Belvedere – Belvedere inclusive é a cidade onde Buffalo Bill mantém suas reféns, sendo uma das pistas escondidas fornecidas por Lecter à Clarice, como visto no final do filme. Merece destaque também o cuidadoso trabalho empregado pelo trio ao emoldurar a imagem do diretor do FBI, Hayden Burke (interpretado pelo “Rei dos Filmes B” e amigo de Demme, Roger Corman), em um corredor e, na sala do mesmo, emoldurada a imagem do então presidente dos E.U.A. George H. W. Bush (que já foi diretor da… CIA!!!!!).

Zea mais uma vez acerta ao compor a cela temporária de Lecter, quando em Memphis, como uma verdadeira gaiola, mantendo o pássaro preso dentro dela. Todo esse cuidado culmina no chocante momento em que “O Canibal” – já fora dela – a “decora” com o oficial Boyle pendurado com os braços abertos e estripado, em uma alusão de que o pássaro voou para longe dali. Antes da lembrança da cena acima, há aquela que antecipa todo o caos gerado, quando Chilton e Lecter – amarrado e usando uma espécie de focinheira – desembarcam do avião. O movimento de câmera (travelling) rumo ao rosto de Lecter resulta na seguinte indagação: onde foi parar a caneta de Chilton? A meticulosa e mirabolante arquitetura do seu plano de fuga ressalta sua frieza e paciência, que, ao deixar seus desenhos sobre a mesa onde seria posto o segundo jantar, propositalmente força o tenente Boyle a tomar outra decisão e, assim, ganha mais tempo para se livrar das algemas – por meio de um simples pedaço daquela caneta.

 

 

 

 

 

 

 

 

A trilha sonora de Howard Shore é permeada por uma sensação de perigo constante durante todo o filme e a fotografia de Tak Fujimoto não dá espaço aos tons quentes e à luz do sol, deixando tudo com certo ar de tristeza, e é justamente nos enquadramentos desta que ele e o cineasta potencializam a natureza dos personagens; primeiro, Demme não se preocupa em manter sob sigilo a identidade de Buffalo Bill perante o espectador; segundo, ao enquadrar os personagens em primeiro plano, faz com que quase todos encarem a câmera, abrindo mão da profundidade de campo e trazendo maior proximidade narrativa . Exprime também o olhar hierárquico nas situações envolvendo Clarice, pois Crawford/Chilton/Lecter/Tate/Boyle, mesmo estando sentados diante dela, exercem inquestionável superioridade.

Além do uso das cores vermelhas/verdes contrastantes e da cena de tirar o fôlego no cativeiro de Buffalo Bill, próximo ao desfecho do filme, a dupla também explora o uso da câmera subjetiva (no caso, representando o olhar de Clarice) na sala de controle de Barney, mostrando todo o ambiente em 360° e abrangendo os televisores que exibem rapidamente Chilton subindo as escadas e Lecter deitado em sua cama. Não é de se espantar que apenas Clarice mantenha o olhar lateralmente ao conversar com alguém, com exceção das cenas envolvendo Dr. Pilcher e a amiga Ardelia. Demme/Fujimoto oferecem um detalhe na movimentação de câmera quando Chilton tenta seduzi-la, uma leve mudança na posição, reafirmando a esquiva por parte dela na tentativa frustrada dele. Os personagens em geral usam roupas de tons escuros condizentes com aquele universo sombrio, duelando com os impactantes olhos azuis do trio Clarice/Lecter/Bill.

Já que a direção/fotografia exploram muito bem essas situações, é conciliando-as com alguns raccords (cortes/transições) da montagem de Craig McKay que a trama flui o passar do tempo de forma eficaz, quando, por exemplo, Clarice pergunta a Crawford sobre a natureza de Lecter e quem a responde é Chilton, ou quando Clarice aos prantos debruça sobre o carro após lembrar do pai, para em seguida encarar o espectador atirando com fúria no alvo durante um treinamento. Ainda que o roteiro de Tally desenvolva muitas conversas frente a frente e, assim, sejam basicamente construídas sobre o campo e contracampo, esteticamente o recurso acaba enriquecendo a narrativa, tornando-o naturalmente imprescindível, principalmente no desenvolvimento da relação entre Clarice e Lecter.

 

 

 

 

“Comportamento reflete personalidade.”, segundo John Douglas.

Supervisionada pelo próprio FBI, a produção do filme é fiel ao situar o Departamento de Ciências Comportamentais da academia de Quantico vários andares abaixo do subsolo, como John Edward Douglas mencionaria anos mais tarde em seu livro “Mindhunter: o primeiro caçador de serial killers americano” (Editora Intrínseca no Brasil, 1995), ao lado do jornalista Mark Olshaker. Por assim dizer, O Silêncio dos Inocentes tornou-se um importante estudo sobre o obscuro lado do ser humano. Contudo, seria ambicioso demais de minha parte aprofundar o que é apenas uma breve análise em uma área criminal tão importante, sendo que por longos anos os ex-agentes do FBI – Douglas, Bob Ressler (que cunhou o termo serial killer) e outros – entrevistaram e estudaram os mais notáveis assassinos (Kemper/Gein/Bundy/Manson, mesmo este não tendo cometido crimes com as próprias mãos) e também os nem tão midiáticos, por assim dizer, analisando seus comportamentos e traçando perfis a fim de desenvolver ainda mais esse campo da psicologia forense. Em maior ou menor escala, a psicopatia atinge a todos, sejam comportamentos ditos antissociais, mentiras visando benefício próprio, ausência de remorso ou empatia, e por aí vai. Assim, inevitavelmente os personagens esbarram em algumas dessas questões de ordem moral e isso dita o desenrolar da trama. Outras características citadas no livro também aparecem no filme, como o fato de determinado serial killer vitimar apenas pessoas do próprio grupo étnico, ou a noção de que não nascem “mals”, mas desenvolvem essa patologia devido a um agravante durante a infância, servindo de gatilho para desencadear a violência .

Sobre os personagens, o sofisticado, inteligente e perigoso Dr. Lecter de Hopkins já foi analisado em inúmeras oportunidades, valendo a lembrança de que o próprio chegou a visitar prisões e estudou verdadeiros assassinos em série para construir melhor seu personagem, sendo até hoje visto como um dos mais importantes personagens da história do cinema. Scott Glenn e Ted Levine, como Jack Crawford e Buffalo Bill, respectivamente, também têm seus méritos. O primeiro é a personificação do próprio Douglas, compondo seu personagem como o homem responsável pelo estudo, mas transgredindo algumas normas em prol do bem maior, e o olhar sério de Glenn por trás dos óculos esconde tal faceta. Já o segundo confere a seu vilão um sujeito cauteloso, enigmático e também detentor de inúmeras feridas abertas, dentre elas algum elo relacionado ao passado com sua mãe, vide a cena em que quase se desmantela quando Catherine Martin (Brooke Smith) chora dizendo que quer sua mãe. O cuidado de Levine na cena em que agoniza de forma visceral após ser baleado por Clarice – remetendo a John Hurt em Alien: O Oitavo Passageiro – também é maravilhoso.

Destaco também o trabalho de Anthony Heald como Dr. Chilton. Basicamente poderia ser a representação perfeita do sujeito que tenta se autopromover, aquele que busca um reconhecimento por alguém maior e, não à toa, o faz diante da Senadora Ruth Martin quando exibe Lecter como seu troféu, seu espécime mais valioso. Nos dias atuais, ele facilmente postaria esse momento nas redes sociais. O sorriso cínico e a entrevista dada após deixar Lecter sob os cuidados da polícia de Memphis escancaram sua natureza egoísta. A ausência de uma bússola dita moral não é exclusividade dele.

Mesmo gerando controvérsia em relação à personificação propriamente dita de Buffalo Bill, principalmente por parte do grupo Aliança entre Homossexuais e Lésbicas Contra a Difamação (em inglês, GLAAD), a pauta que também sempre é levantada é a de que Ed Gein (notório assassino norte-americano retratado em inúmeros filmes) teria servido de “inspiração” para o embrião da história, já que a ele foi atribuída a acusação de canibal, além de usar peles de pessoas mortas para decorar sua casa e até mesmo a acusação de ser simpatizante do nazismo (tudo isso retratado no filme). Independentemente das motivações de Harris/Tally, O Silêncio dos Inocentes perdura como um intenso estudo de personagens, mantendo antigos fãs e atraindo uma nova legião deles, tanto do livro quanto do filme.

Bob Ressler, Ed Kemper e John Douglas (pausa na entrevista).
Jonathan Demme e John Douglas no set de filmagem.

 

 

 

 

 

 

 

A herança dos cordeiros

Passados 30 anos de sua primeira exibição em 30/01/1991 nos Estados Unidos, O Silêncio dos Inocentes estreou em terras brasileiras alguns meses depois, dia 17/05/1991. Orçado à época em US$19 milhões, arrecadou aproximadamente US$273 milhões ao redor do mundo. O filme também quebrou um velho estigma da Academia, que – ainda hoje – é conhecida por não reconhecer devidamente produções do gênero horror/suspense. Consequentemente, integra a seleta lista de três filmes que venceram os cinco principais prêmios do Oscar, o chamado Big Five: filme, direção, atriz, ator e roteiro (no caso, aqui, adaptado).

Outro dado curioso é o de que Hopkins mantém-se como o segundo ator da história a vencer na categoria principal com pouco tempo de tela (em torno de 16 minutos), atrás apenas de David Niven, pelo filme Vidas Separadas (1958), com uma aparição em torno de 15 minutos. Também foi Hopkins quem sugeriu à figurinista Coleen Atwood vestir seu personagem com roupas brancas – citado no início do texto –, sendo que até mesmo foram confeccionadas camisetas para venda com o código B5160-8, tamanho o fascínio causado.

O filme teve uma cópia praticamente escondida lançada pela Criterion, com 30 minutos a mais. Gerou também Hannibal, como sequência, e Dragão Vermelho, prequel ambientada após a captura de Lecter. Uma série de TV também foi produzida, mas nenhum dos exemplares se aproximou da representatividade que o filme de 1991 teve, tamanho sucesso deste expoente clássico da condição frágil e também destrutiva do ser humano.

Obs.: o filme está disponível na plataforma de streaming Telecine e permanecerá até 31/01/2022.