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Dança da morte: Pandemia e Fim do Mundo

Enquanto aguardamos a estreia da nova adaptação da obra de Stephen King, que tal recordarmos a história sobre a pandemia que acabou com a civilização?

Aviso: A maior parte do texto é livre de spoilers. Somente a última seção discute partes importantes do enredo, mas isso será sinalizado.

As histórias sobre o fim do mundo são várias. A pergunta “como será o fim do mundo?” está incluída entre as grandes questões da humanidade, junto a “de onde viemos?” e “por que existimos?”. Pertencentes a uma cultura de raiz judaico-cristã, possuímos uma enorme tradição do que diz respeito ao Apocalipse.

O terror do ano 1000, mais anedótico do que histórico, expressa isso muito bem. A chegada de um ano de número redondo também levantou questões nos anos 2000, menos relativas ao final dos tempos e mais próximas ao bug do milênio. O mundo até poderia não acabar da mesma forma descrita no Apocalipse, mas o colapso dos computadores levaria a um caos sem precedentes.

Ao longo da história cristã foram vários os autores que tentaram fixar uma data para o fim do mundo. O pânico do ano 1666 foi mais disseminado que o relativo ao ano 1000. Diversos autores escatológicos – o tipo de literatura que buscava os sinais do Apocalipse no dia a dia – estabeleciam o ano de 1666 como a grande vitória do Anticristo, a figura oposta ao Messias cristão.

O cinema imaginou diversos cenários para o fim do mundo, que ao longo do século XX foi se tornando menos relacionado à Bíblia e mais a um colapso natural e/ou social. Armageddon (1998) e O Dia Depois de Amanhã (2004) imaginaram cenários de destruição por causas naturais, enquanto Dr. Fantástico (1964) e O Dia Seguinte (1983), traduziram para as telas o terror nuclear.

Há ainda um outro tipo de produções pós-apocalípticas. Os filmes de zumbi de George Romero, por exemplo, não tratam do fim completo da raça humana, mas sim de um fim da civilização tal como conhecemos e sua reestruturação em uma nova realidade. A trilogia composta por A Noite dos Mortos-Vivos (1968), Despertar dos mortos (1978) e Dia dos mortos (1985), trabalha desde a sobrevivência até a reconstrução da humanidade – ou ao menos o seu ensaio.

Dança da Morte – no original The Stand – é um livro de Stephen King publicado em 1978. Nele, a humanidade se depara com um vírus mortal que causa uma pandemia de proporções nunca antes vistas. A história foi adaptava para a TV em 1994 e, agora em 2020, ganhará uma nova versão com elenco estelar. O que esperar da produção e, o mais importante, o que ela tem a nos dizer?

 

A História

Em A Dança da Morte, tudo começa em junho de 1990. Em uma instalação militar de pesquisa. Um vírus mortal, não sabemos se natural ou criado em laboratório, vaza e mata os trabalhadores do local. Um vigia, Campion, consegue escapar com sua família, descumprindo todos os protocolos de segurança. Ele acaba sendo o vetor da gripe mortal que ficou conhecida como Capitão Viajante.

Campion consegue chegar a um posto antes de morrer, contaminando todos os presentes que, por suas vezes, contaminam todos com que tem contato. Um policial que fora contaminado, mente sobre ter estado no posto e segue indo de cidade em cidade cumprindo seu trabalho normalmente, enquanto espalha a doença. Ele apenas retorna ao posto para informar algo aos amigos: “me parece que querem botar todos vocês em quarentena”.

A Capitão Viajante era a gripe perfeita. Havia 99,4% de risco de contágio e um igual índice de mortalidade. O vírus se mutava cada vez que o corpo do infectado produzia anticorpos, tornando praticamente impossível a recuperação. O governo, porém, negava veementemente a epidemia. A inspiração de King poderia muito bem ter vindo do governo militar brasileiro, que em 1974 escondeu uma epidemia de meningite.

Medidas de restrição começaram a ser implementadas. As grandes cidades tiveram suas fronteiras fechadas enquanto o governo insistia que a “suposta” Capitão Viajante era só uma gripezinha. Mas estamos falando de um livro de ficção, certo?

Ed Harris dá vida ao militar negacionista

Em Dança da Morte, os militares insistiam na mídia que a gripe seria “apenas levemente mais virulenta do que as cepas de Londres ou Hong Kong” ao mesmo tempo em que utilizavam um pesado equipamento de proteção, mesmo que não soubessem ao certo o motivo:

A esperança era que tudo se resolveria logo, pois “as restrições seriam suspensas tão logo a vacina estivesse liberada para uso geral”. Infelizmente, as medidas de contenção não foram tomadas pelo governo, a população foi privada de informações e a disseminação do vírus ficou completamente fora de controle. Não houve nem tempo de produzir uma vacina.

Pouquíssimas pessoas sobreviveram. Elas começaram a sonhar com duas figuras, uma senhora negra idosa chamada Abigail e um homem de preto conhecido como Randall Flagg. Os sobreviventes se dividem em dois grupos, cujos centros são essas duas figuras antagônicas. A partir disso, desenvolvem uma nova sociedade.

Esse livro de King bebe muito de referências cristãs. Flagg é tratado como o Diabo, ou um enviado dele, em diversos momentos. Mãe Abigail se comunica com Deus e diz ser porta-voz de seus desígnios. As duas facções se dividem, narrativamente, entre Bem e Mal. No livro os acontecimentos são mais demorados, por vezes King se arrasta na narrativa, mas não chega a ser tedioso.

Os dois grupos se reúnem ao redor de duas cidades. Os seguidores de Flagg vivem em Las Vegas, enquanto a turma de mãe Abigail se refugia na pequena Boulder, no Colorado. A comunidade se autodenomina Zona Franca, estabelece uma comissão de governo e propõe a realização de assembleias.

Dança da Morte faz parte do que podemos chamar de “estudos sobre a sociedade”, dentro da obra do autor. Sob a Redoma e O Concorrente também tem essa mesma entoada. Nessas produções, King busca confrontar a humanidade com situações extremas e propõe a reflexão sobre qual seria a natureza humana: a má e egoísta ou a boa e esperançosa. É claro que seu objetivo não é propor uma resposta, mas em suas obras ele deixa algumas pistas.

A visão que King parece ter é mais otimista. Apesar de admitir a existência do mal, do egoísmo e da violência, ele não deixa de incluir em suas obras personagens bons, ingênuos, gentis e divertidos. Em meio à pandemia temos um personagem como Tom Cullen, que deixa a narrativa mais leve ao mesmo tempo em que tem uma participação fundamental no seu desenrolar.

No caso de Dança da Morte, somos apresentados a personagens complexos que possuem diversos defeitos, erram, tomam decisões moralmente duvidosas, mas que, no final das contas, acreditam em um futuro melhor, ou no caso, na reconstrução de uma sociedade que não siga os mesmos parâmetros que anteriormente a conduziram à ruína.

 

Dança da Morte na TV

Nos anos 1990, Stephen King recebeu uma proposta para que sua história se tornasse uma minissérie. O próprio escritor desenvolveu roteiro, até por isso há grande fidelidade em relação ao produto original. A produção foi exibida pelo canal ABC e contou com a direção de Mick Garris, conhecido por ter dirigido outras adaptações de King, como Sonâmbulos (1992) e Montado na Bala (2004).

O primeiro episódio conta com uma cena embalada por Don’t Dream It’s Over da banda Crowded House, vale a pena conferir para melhor pegar o tom proposto à produção:

(…)
Há uma batalha pela frente, muitas batalhas estão perdidas
Mas você nunca verá o fim da estrada
Enquanto estiver viajando comigo

E agora, e agora
Não imagine que está acabado
E agora, e agora
Quando o mundo vem
Eles vêm, eles vêm
Para construir um muro entre nós
Nós sabemos que eles não irão ganhar

https://open.spotify.com/track/7G7tgVYORlDuVprcYHuFJh

A minissérie não conta com atores muitos conhecidos nos papéis principais, à exceção de Rob Lowe, na época um novato nas telas. As atuações não são das melhores e atrapalham um pouco no desenvolvimento da trama, sobretudo sua carga dramática. Há participações especiais de Kathy Bates, Ed Harris, Tom Holland, Sam Raimi, John Landis e do próprio Stephen King.

Um Rob Lowe novinho e machucado

Dividida em quatro episódios de 1h30, Dança da Morte (1994) peca em alguns cortes, como por exemplo, a inexistência da personagem Rita Blakemoor, importante para o desenvolvimento de um dos protagonistas, Larry Underwood. Na versão de 2020 ela já foi confirmada. O roteiro acabou reduzindo o arco de Harold e de Nadine, dois importantes antagonistas.

Outro personagem que acaba tendo sua complexidade reduzida é o Homem da Lata de Lixo – que na nova versão é vivido por Ezra Miller. Esse personagem peculiar muda drasticamente os rumos da trama. Na série, essa virada é mantida, porém, com pouco tempo de tela, tudo fica um pouco confuso e parece até mesmo sem motivo.

Matt Frewer no papel do Homem da Lata de Lixo
Ezra Miller interpretará um piromaníaco em “The Stand”, do CBS All Access – Categoria Nerd
Ezra Miller na nova versão do personagem

Quanto ao final, a conclusão do livro de King já é um pouco cafona, mas a série de 1994 conseguiu se superar, incluindo até uma espécie de in memoriam em flashbacks. Foi uma sequência que acabou envelhecendo mal, mas nada que diminua a relevância da narrativa.

Dia 17/12/2020 estreia a nova versão de Dança da Morte, produzida pela CBS, e com direção de Josh Boone. O elenco traz James Marsden, Amber Heard, Greg Kinnear, Odessa Young, Henry Zaga, Jovan Adepo, Brad William Henke e Owen Teague. Whoopi Goldberg vive mãe Abigail e Alexander Skarsgård interpreta sua contraparte, Rick Flagg.

The Stand | Série baseada em romance de Stephen King ganha trailer
Whoopi Goldberg viverá a centenária mãe Abigail

Tendo em vista o atual contexto de pandemia, podemos esperar uma série com uma mensagem forte, mesmo que as filmagens tenham sido encerradas antes da eclosão da pandemia. A versão de 2020 tem tudo para abocanhar nossas ansiedades sociais.

As imagens de divulgação mostram uma grande qualidade de produção e fidelidade à caracterização original dos personagens. As únicas mudanças estão nos gêneros dos personagens Homem Rato, que será interpretado por Fiona Dourif (A Maldição de Chucky, 2013), e Ralph Brentner, que virará Ray com Irene Bedard.

Stephen King, que está encarregado do roteiro novamente, prometeu um novo final à história. O último capítulo, inclusive, foi escrito em parceria com um de seus filhos, Owen. O escritor também terá uma aparição especial, assim como Garris, diretor da versão de 1994.

King interpretou um dos habitantes da Zona Franca

 

Por que alterar o final?
Atenção: essa última seção do texto contém detalhes importantes sobre a trama.

O livro de King foi publicado em 1978. O mundo vivia sob outra dinâmica, em especial no que se refere a medos e ansiedades sociais. Com a Guerra Fria, o principal medo passou a ser o do apocalipse nuclear. O mundo esteve, por diversas vezes, a poucos passos da hecatombe nuclear. O Dia Seguinte (1983) talvez seja uma das produções que melhor soube traduzir esse temor para as telas.

Pensando no contexto de 2020, a pandemia que extermina 99% da humanidade é muito mais assustadora do que a bomba atômica. A primeira é muito mais real para nós. O final original de Dança da Morte traz as duas coisas. A mão divina que envolve a bomba trazida pelo Homem da Lata Lixo retira Las Vegas e boa parte da costa oeste do mapa. Ela funciona praticamente como uma vingança divina às ambições humanas.

Um novo final, por mais impactante que seja a explosão nuclear, é muito bem-vindo, sobretudo se King retirar da história o patriotismo bobo que, apesar de aparecer em diversos momentos, fica muito fora de tom na conclusão. Que venha um novo final que se comunique mais com esse ano tão peculiar.

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