A República do Medo marcou presença na pré-estreia do terror nacional “O Caseiro” em São Paulo, conferimos a entrevista coletiva concedida pelo diretor e roteirista Julio Santi, o Roteirista João Segall, a produtora Rita Buzzar e todo o elenco do filme. Depois tivemos a oportunidade de bater um papo exclusivo com o solicito Julio Santi que escreveu e dirigiu esse longa que tem data de estreia prevista para o dia 23 de junho de 2016.
Confira abaixo nosso papo com Julio.
RdM:
Um dos aspectos que mais impressionam é a qualidade e o cuidado com o roteiro. Como surgiu a ideia de O Caseiro? E como foi a experiência de escrevê-lo junto com João Segall?
Julio Santi:
Houve de fato um cuidado com o roteiro. Muito estudo e muitos tratamentos. Muito trabalho mesmo. Coisa de um ano e meio, aproximadamente. Esse cuidado parece estar refletido no trabalho final, o que é gratificante de ouvir depois desse tempo todo – obrigado.
Sobre a ideia inicial: nasceu num almoço entre eu e o meu irmão, Felipe Santi. Tínhamos a ideia exata dessa estrutura: um protagonista que passa um final de semana numa casa de família, no interior. E o final, claro. Então sentamos periodicamente e escrevemos um argumento de 15 páginas (está guardado com muito carinho).
A segunda parte do desenvolvimento aconteceu meses depois, quando apresentei a história para o João. Nós tivemos o trabalho todo de escrever, repensar, colocar as ideias à prova. Tivemos ideias novas – foi muito trabalho mesmo. Eu comecei escrevendo para teatro, e sempre escrevi sozinho. A parceria com o João foi uma descoberta muito reveladora. Acho que a gente estava com entusiasmo de contar essa história (de chegar ao final de maneira orgânica), também, estávamos com o entusiasmo de descobrir os mecanismos do thriller. Acho que há uma admiração e respeito mútuo, o que incentiva a criatividade, e não reprime. É muito prejudicial, em qualquer área, alguém reprimir um trabalho em andamento — a gente tem muita ideia ruim, escreve muita cena ruim, usa muita muleta — só que elas são necessárias… pois a ideia boa, a cena boa, elas vêm a partir desse mar de coisas não tão legais. Eu olho para trás e vejo que as melhores coisas do filme vieram com muito trabalho.
E neste ponto, trabalhar com o João foi ótimo, pois a gente entendeu isso — que precisa errar pra acertar. E aí, a criatividade multiplicou bastante. Foi como se a gente usasse uma lupa o tempo todo.
RdM:
Percebe-se que o filme não se define apenas por um gênero, já que aborda elementos investigativos e de suspense. Essa foi a ideia desde o inicio? Vocês começaram a escrever um filme de terror ou a ideia foi mudando aos poucos?
Julio Santi:
Sim – foi a ideia desde o início, já no argumento.
Como o protagonista não acredita em fantasmas, ele tem um método racional, e isso faz o plot investigativo ser o fio condutor da narrativa. Ao mesmo tempo, são raros os momentos em que a gente descola do protagonista: a plateia aprende a história junto com ele. Sempre gostei desse tipo de história. A gente fica dentro mesmo, quase de camarote. Em quase nenhum momento damos para a plateia informações que o Davi não tenha. Isso aumenta o suspense, acredito – não estamos querendo omitir partes da história, claro, mas sim tentar oferecer a experiência de estar junto com o protagonista o tempo todo.
Então, de um certo modo, o gênero do filme acompanha um pouco a visão de mundo do protagonista. O terror não depende de assombração ou não – mas do que ele pensa ou sente.
Acho também que a proposta, que o João comprou comigo, foi de não dar sustos gratuitos. Então, tentamos não fazer cenas com roupas do gênero, mas que a investigação do Davi fosse plausível — essa foi a nossa maior preocupação.
RdM:
Infelizmente o gênero suspense e terror não são comuns em produções nacionais. Quais as dificuldades em produzir algo assim no Brasil? E porque resolveu arriscar um terror/suspense logo em seu segundo longa?
Julio Santi:
Acho que parte das dificuldades são as mesmas para qualquer filme – orçamento, achar um distribuidor, um produtor que aposte no projeto, e assim por diante.
Uma segunda dificuldade, imagino, é quebrar um pouco o preconceito… Mas sou otimista. Acho que é um caminho natural as comédias estarem consolidadas, e gradativamente a demanda por outros gêneros aumentar — e surgirem mais filmes de suspense. Tem muita coisa vindo.
Acho que dirigir é sempre um risco (rs). Suspense é ótimo para aprender, de verdade. É um desafio pensar foto, imagens, construção de clima – e eu gosto muito desse tipo de filme, claro.
RdM:
Durante o filme notei algumas tomadas de câmera que me remeteram a O Iluminado (The Shining) e acho impossível não comparar alguns aspectos com produções de M. Night Shyamalan. Quais foram suas referencias e inspirações para O Caseiro?
Julio Santi:
Eu estou achando muito legal ouvir muitos feedbacks – acho que muitas das referências que as pessoas falam são inconscientes, claro. Coisas que eu projeto no Caseiro a partir de filmes que gostei e que sempre em agradam.
O Iluminado é um filme referência, e sempre vai ser. Acho que a Julia tem um pouco do Danny — e a Bianca trouxe isso para mim já no primeiro dia do teste — essa introspecção toda. Claro: tem um corredor enorme e comprido na casa, então fazer cenas lá era inevitável até por conta do roteiro. Mas tem uma cena com as duas meninas que a gente fotografou usando a perspectiva como o Kubrick usava! Foi ótimo!
Sobre o M. Night Shyamalan, idem. Corpo Fechado, A Vila, O Sexto Sentido, Sinais – eu vi todos esses filmes inúmeras vezes, antes mesmo de saber que eu ia estudar cinema na vida. São ótimos. Acho que ele constrói uma atmosfera a partir do enredo, sempre tentando levar a gente para um lugar absurdamente inesperado. Então, é natural rever, tentar entender como ele faz isso – tanto em estrutura como visualmente.
Tem um filme que é muito bom, de um diretor muito bom: Prisoners, também. Muita tensão o tempo todo. É um diretor incrível, e um fotógrafo incrível também. Estudei muito em como deixar o estado de tensão o tempo todo lá.
Outro filme, roteiro fantástico, e que usa o steadicam muito bem é o What Lies Beneath, do Robert Zemeckis. É uma aula de direção. Tentei sugar o máximo que pude de lá também.
O Lobo Atrás da Porta é um filme que me inspirou muito também. É bem feito, bem escrito e muito bem dirigido – tem a vertente policial, que eu gosto. Ainda mais por ser uma produção nacional, me incentivou muito.
E aí, tem muita coisa que eu levantei de inúmeros filmes, claro. Os Inocentes, Jacob’s Ladder, Caso 39, O Orfanato, Os Outros, The Haunting, Let the Right One In, Dark Water etc. Tem muita coisa boa!
RdM:
O elenco mescla muita experiência com caras novas no cinema, alguns oriundos do teatro e televisão outros trabalharam com você em O Circo da Noite. Como foi a montagem e a escolha desse elenco e como foi escolha das meninas Bianca Batista e Annalara Prates?
Julio Santi:
A montagem foi orgânica. Eu, particularmente, gosto muito de ator que começou no teatro – se você estudou, a base é muito profunda. Muita gente fala isso, e não é por acaso. Já tinha trabalhado com a Denise Weinberg e o Fábio Takeo. Quando começamos com o Caseiro, é como se a gente retomasse o trabalho da onde parou. Aliás, é exatamente isso. E isso acho que fica no filme — a gente fala a mesma língua há anos. O Leopoldo Pacheco e o Bruno Garcia já tinham trabalhado com a Denise – então eles já tinham uma intimidade entre eles. O que facilitou muito pra ensaiar, dirigir, discutir ideias. É importante o elenco falar a mesma língua. A Malu Rodrigues tem 15 anos de carreira, e faz muito musical – tem a cultura do teatro nela. Muito profissionalismo, comprometimento – foi ótimo.
A escolha das duas meninas foi fácil. Tive sorte. Olhei muitas meninas, mas eu tive a sorte delas serem da mesma agência. A Luana (da Tribo) entendeu exatamente o que eu estava procurando. Depois que eu fiz um teste com elas, foi quase imediata a escolha.
RdM:
No elenco há duas crianças sem experiência no cinema. Qual a maior dificuldade em trabalhar com meninas tão jovens? E como dosar a inocência e a responsabilidade delas durante as filmagens?
Julio Santi:
Precisou de tempo de ensaio. Meses trabalhando toda semana, duas ou uma vez, dependendo da época. Eu e as duas por um período. O Fábio Takeo também as preparou bastante.
Elas são muito inteligentes: sabiam da responsabilidade – e eu não pude fazer nada. Foram muito profissionais. Os pais ajudaram demais.
Ao mesmo tempo, nunca falei com elas sobre isso. São crianças. E a responsabilidade não podia pesar nunca. Acho que não é uma questão de manter a inocência, pois elas sabiam o que estavam fazendo, a dimensão do projeto, e eu nunca me propus a esconder isso delas. Acho que o principal foi que elas confiaram em mim — mantiveram essa leveza o tempo todo pois eu tomei um cuidado enorme de mostrar que elas estavam em boas mãos – a equipe toda fez isso. Outra coisa importante é que eu as tratei com seriedade, mas leveza.
O resultado mais incrível: elas fizeram o trabalho delas, e não o meu. Elas ganharam certa independência: só assim para serem orgânicas. Vocês viram: elas fizeram planos sequência inteiros. Eu não precisei editar. Elas deram opção. E para isso, precisa de tempo, trabalho — como qualquer ator.
RdM:
Um dos pontos que mais me agradou foi a fotografia, principalmente no aspecto narrativo onde é muito importante. Como foi trabalhar com Uli Burtin e quais os desafios de filmar a noite e com pouca luz?
Julio Santi:
O Uli tem muita experiência e, assim como eu, queria servir à história do filme. Quando a prioridade é essa, a discussão é profunda, sempre chegamos à consenso. Acho que tudo tem que ter um aspecto narrativo – é difícil muitas vezes encontrar isso. Mas é o coração do trabalho do diretor — tudo servir à história. Pra mim, era crucial que fosse assim. O visual ser a história.
RdM:
Esse é o seu segundo longa-metragem, mas apesar de jovem você já tem uma carreira estabelecida no teatro. Como foi sua transição do teatro para o cinema?
Julio Santi:
Sinceramente, não acho que estabeleci uma carreira no teatro. Tive só duas peças montadas, como dramaturgo. Claro, tem peça escrita que não foi montada. É uma curta trajetória, mas não um estabelecimento de fato. Claro – aprendi muito nesses anos estudando, com as peças montadas – foi um período intenso para mim. Mas falta muito!
A transição ainda está acontecendo. Acho que os meus primeiros curtas são teatrais ainda. E o primeiro longa é um falso documentário, o que foi ótimo — conversa muito com o teatro de várias maneiras.
RdM:
Não vale ficar em cima do muro. Teatro ou cinema?
Julio Santi:
Cinema!
RdM:
E por fim a pergunta que todos fazem ao deixar a sala de cinema. Existem planos ou ideias para O Caseiro 2?
Julio Santi:
Acho cedo ainda para pensar numa sequência. Existem circunstâncias óbvias, claro: o filme precisa de aceitação do público, as pessoas precisam querer. Acho que há caminhos que podem ser abertos que podem resultar numa história bem legal, mas vamos esperar!