1_NZK8gZfZn7IYBrl-qgyRsQ

Ginger Snaps: Uma Análise da Saga

O licantropo é uma lenda muito antiga que se espalhou por vários continentes. Diversas culturas têm a sua representação do lobisomem. É uma criatura permite a realização de muitas analogias que, geralmente, jogam com a questão da real natureza humana. No cinema, O Lobisomem (1941) ajudou a consolidar o mito como um dos mais importantes dentro do gênero do horror.

Com um orçamento de 5 milhões de dólares, Ginger Snaps (2000), que no Brasil recebeu o falho título de Possuída, é um marco no subgênero dos lobisomens. Após o clássico da Universal, os lobisomens só receberiam uma grande notoriedade novamente nos anos 1980. Um Lobisomem Americano em Londres (1981) e Grito de Horror (1981) revolucionaram a lenda, como citamos no RdMCast #255 – A História da Maquiagem no Cinema de Horror. Até hoje, vez ou outra, aparece um novo filme sobre a temática, mas são poucos os realmente impactantes.

A grande inovação com a franquia Ginger Snaps foi o deslocamento nas bases da analogia da lenda do lobisomem. De forma geral, os filmes anteriores haviam centrado suas narrativas em homens licantropos – embora vez ou outra aparecesse uma mulher-lobo em tela. Metáfora para a sexualidade aflorada, o lobisomem representava quase que exclusivamente a ameaça sexual dos homens, apontando para uma dualidade humana: de um lado a metade social, de outro a metade incontida, selvagem.

Ginger Snaps (2000, dir. John Fawcett)

Dirigido por John Fawcett e com roteiro de Karen Walton (Orphan Black, 2013-2017), Ginger Snaps (2000) é um icônico horror adolescente. A história é protagonizada por duas irmãs que vivem à margem da sociabilidade escolar. Elas possuem uma estranha fixação pela morte e outros temas mórbidos, que se reflete em seus – perturbadores – trabalhos escolares.

Na época de seu lançamento, apesar de algumas críticas favoráveis, o filme não conseguiu nem ao menos se pagar. A bilheteria de 572,781 dólares jamais justificaria uma sequência. Contudo, após o lançamento em VHS e DVD, Ginger Snaps (2000) conquistou uma legião de fãs.

O longa já se inicia com um cão dilacerado, nos preparando para a violência dos acontecimentos futuros. A estética gótica lembra aquela de Jovens Bruxas (1996), assim como o comportamento peculiar das adolescentes. Ginger (Katharine Isabelle) e Brigitte (Emily Perkins) realizam um pacto de morte. Elas morreriam juntas e sozinhas, pois fora assim que haviam vivido até então.

As irmãs Fitzgerald firma seu pacto de morte

Na imagem acima é possível perceber as duas protagonistas em níveis de igualdade. Ambas estão no mesmo nível, as luzes atrás delas brilham com intensidade. O pacto é realizado no quarto, no subsolo da casa, ressaltando ainda mais sua condição “marginal” em relação a outros adolescentes e à sociedade em geral. Por fim, destaca-se a cor lilás, que em geral denota respeito e um clima otimista. Elas estão juntas e podem enfrentar tudo, ou será que não?

Por fim, na imagem acima, fica clara a dominância de Ginger, que é um ano mais velha que Bee, embora elas estudem na mesma sala, pois a caçula pulou um ano. A irmã mais velha mantém o olhar mais erguido e o braço esticado, representando sua perseverança. Já Brigitte, mantém um olhar hesitante que é reforçado pelo seu braço levemente dobrado.

Para aumentar o nível de “estranho” que cerca as irmãs, a menstruação de Ginger está atrasada em 3 anos, uma informação para prestarmos atenção. As irmãs negam qualquer nível de sexualidade. Criticam os outros jovens de sua idade por serem “latrinas hormonais”. A menstruação é uma maldição na opinião de Ginger – impossível não lembrar de Carrie, A Estranha (1976).

A menarca de Ginger aparece no momento mais inapropriado, quando as irmãs estão andando pelas ruas à noite e se deparam com um perigo iminente: um lobo enorme. Atraído pelo cheiro do sangue menstrual, o lobo ataca e morde Ginger. As irmãs conseguem escapar e chegam em casa. A irmã mais velha se recusa a ir ao hospital pois já sente suas feridas cicatrizarem.

Uma “Lobisadolescente”

A transformação de Ginger tem inicio. Diferente da lenda mais clássica, ela não acontece apenas na lua cheia, mas é uma mudança corporal gradativa que afeta também a personalidade – mas nós estamos falando de licantropia ou puberdade? – da irmã mais velha. A mudança na postura de Ginger é a mais evidente. Ela passa de uma adolescente tímida para uma quase femme fatale, como na seguinte e icônica cena:

A câmera lenta é essencial

Na cena acima, Ginger abre a porta da escola ainda hesitante, desconfortável com seu próprio corpo. À medida em que anda, vai ganhando confiança. Isso fica bastante evidente com o olhar e o caminhar forte da atriz. Nesta cena, a “lobisadolescente” inverte a lógica de dominação escolar presente até então. Ela deixe de ser uma excluída.

A sexualidade de Ginger aflora de maneira gradativa e, junto, o afastamento em relação à irmã. Bee percebe de cara que há algo errado, mas sua mãe apenas explica que é um processo normal da puberdade. É no corpo de Ginger que vemos que não há nada de normal nessa transformação. Pelos, unhas compridas como garras, uma mecha branca muito estilosa… tudo isso poderia ser explicado, mas Ginger desenvolve um pequeno rabo. Sua agressividade cada vez mais latente assusta Bee.

O roteiro ainda faz uma analogia da licantropia com as DST’s. Ginger se envolve – sem proteção – com um de seus colegas de escola. Até então, ele aparecera um uma posição mais dominadora, no alto das arquibancadas, olhando de cima as mulheres, suas “presas”. Porém, a nova Ginger o coloca em total submissão, quebrando a sua posição anterior.

O garoto “pega” a licantropia, mas nele as mudanças não são nada parecidas com as de Ginger. Sua aparência é a de alguém muito doente, ele fica coberto de feridas e também desenvolve uma forte agressividade. É Bee quem tem de resolver tudo. Com a ajuda do traficante local, Kris, ela consegue um pouco de acônito, uma planta que supostamente tem propriedades de combater a maldição do lobisomem.

Ginger e seu estranho apetite por sangue

Irmãs Até o Fim

A mudança de Ginger é inevitável. Sua metade loba extrapola todos os limites. Ginger se torna uma assassina, a quem a mãe e a irmã tentam proteger. É até bastante engraçada a forma como a mãe, ao longo do filme, é uma figura de pouca expressão e muito confusa, contudo, na hora em que sua filha precisa de ajuda, ela se dispõe a abandonar tudo e todos.

Ginger Snaps (2000) é, acima de tudo, um conto sobre sororidade. Os personagens masculinos, à exceção de Kris, são todos inúteis. Ele, porém, mesmo tendo uma importância narrativa maior, não se mostra como um interesse romântico – ao menos do modo tradicional. Isso é algo que ronda a franquia. Não há a necessidade de criar interesses românticos, deixando mais espaço para a relação entre as irmãs.

Brigitte sacrifica tudo por Ginger, nos recordando do pacto feito no início do filme. Ela se contagia com a doença na tentativa de que sua irmã a escute. A irmã mais velha, porém, já está descontrolada. Ela foge e causa mais mortes. Em um momento de grande drama, Bee percebe que a única saída para tudo aquilo é a morte de sua irmã.

Brigitte repousa sobre o corpo transformado de sua irmã

A cena final é uma recriação da cena do pacto, no começo do filme. Agora, porém, as irmãs não estão mais em igualdade. As sombras tomam conta do quarto, o lilás não é mais tão presente. Ginger, transformada em loba, está oculta nas sombras enquanto sua irmã sofre acima dela. No final da história, Bee ocupa o lugar de dominância na relação que a sua irmã possuía anteriormente.

 

Ginger Snaps 2: Unleashed  (2004, dir. Brett Sullivan)

Quatro anos após a estreia tímida da história de Ginger e Brigitte, uma continuação estava pronta. Duas na realidade. O segundo e o terceiro filme foram lançados no mesmo ano, uma escolha bastante peculiar e que não ajudou em nada na bilheteria.

A segunda aparição das irmãs Fitzgerald teve a direção de Brett Sullivan, um nome não muito conhecido, e roteiro de Megan Martin, que também não possui um currículo muito extenso. As atrizes Katharine Isabelle e Emily Perkins retomam seus papeis. A primeira, é claro, apenas como uma aparição na mente perturbada da irmã.

O segundo filme, que no Brasil foi chamado de Possuídas 2: Força Incontrolável, foca em Brigitte. Ela não desistiu de encontrar a cura e passa os dias injetando acônito em suas veias, um veneno para calar a sua metade selvagem. Ela está constantemente em fuga, não apenas pelos fatos do primeiro filme, mas porque um lobisomem sedento para acasalar a persegue pelo cheiro.

Bee acaba tendo uma overdose da substância e vai parar em um hospital psiquiátrico que a trata como uma dependente química em processo de reabilitação. Diferente de Ginger, a irmã mais nova tem horror à transformação e fica dependente de uma substância perigosa a fim de impedir que seu outro lado venha a tona. Ela utiliza o acônito como uma forma de escapar da realidade inevitável.

 O Hospital

Espírito, a menina loira ao centro, é a nova parceira de Bee

A sequência trabalha com temas bastante pesados como a automutilação e o abuso sexual. As jovens lá dentro possuem seus problemas, embora só tenhamos informações de Espírito. Essa personagem desenvolve uma ligação com Brigitte e se torna como uma nova irmã. Todas as internas estão submetidas aos avanços de um enfermeiro abusador que troca doses de drogas por favores sexuais.

A qualidade do roteiro cai bastante. O filme se passa praticamente todo em ambientes fechados, o que aumenta a percepção de a história estar “presa”. O destaque fica na maquiagem e nos efeitos práticos. O lobisomem, aliás, é mais bem construído do que o do primeiro filme.

O lobisomem ataca Bee no hospital

A união entre Bee e Espírito é um ponto positivo do filme. As duas funcionam bem juntas. Estranhamos o fato de a menina saber dirigir? Sim, mas isso é apenas detalhe. Juntas, elas executam um plano de fuga bem sucedido e poderiam viver felizes na casa da avó de Espírito, não fosse a falta preocupante de acônito. Nesse ponto, a transformação corporal de Brigitte já é mais evidente.

Amizade ou Trapaça?

A dupla recém formada tem de recorrer ao enfermeiro abusador para conseguir o acônito. Espírito já havia entendido tudo o que estava acontecendo. Leitora voraz de quadrinhos, ela identificou os sintomas de Bee com a lenda do lobisomem. O que nós espectadores não sabemos é que a menina possui um plano muito bem estruturado.

Espírito passa a perna em todos. Na médica, no enfermeiro e até em sua “irmã”. Seu objetivo é dar vida a um mundo que criou dentro de sua própria mente. Um mundo de fantasia que se tornou possível graças à maldição carregada por Brigitte. No final, Espírito consegue concluir seu plano e prende a protagonista, já totalmente transformada, no porão da casa.

A transformação de Bee antagoniza com a de Ginger. Enquanto para a irmã mais velha a mudança significou uma libertação, o ocorrido com Brigitte mostrou que nem sempre as transformações significam uma libertação. No caso da sequência, a metáfora se apresenta de forma bastante literal. Apesar de seus defeitos, Possuídas 2: Força Incontrolável (2004) é um filme muito interessante e que mantém boa parte da essência do primeiro. O foco é no relacionamento de amizade entre mulheres, e não em possíveis romances.

 

Ginger Snaps Back: The Beginning (2004, dir. Grant Harvey)

No mesmo ano do segundo filme, também foi lançada a terceiro e última aparição das irmãs Fitzgerald. Dessa vez, em uma história que se passa no século XIX e que não explica em nada sua relação com os dois primeiros filmes. Katharine Isabelle e Emily Perkins interpretam as personagens que possuem os mesmos nomes que as irmãs dos primeiros filmes.

Assim como na outra sequência, o diretor, Grant Harvey, e os roteiristas, Christina Ray e Stephen Massicotte, não possuem trabalhos muito conhecidos. No Brasil, a tradução seguiu o padrão das anteriores e nomeou o filme Possuída 3: O Início.

O último filme da franquia se porta como um conto de fadas – macabro, evidentemente. As duas irmãs, sobreviventes de um naufrágio, vestem seus capuzes no melhor estilo Chapeuzinho Vermelho. Elas andam pela neve e se deparam com uma indígena idosa que lhes faz uma previsão. Assustadas elas correm e Brigitte acaba presa em uma armadilha para ursos.

As irmãs vagam sem rumo

Um nativo-americano jovem aparece e ajuda a dupla. Eles vão até um forte militar que aparentemente foi esquecido pelo exército. Os moradores são bastante antipáticos. Entre eles há um pastor fanático que repudia a presença das mulheres.

Um Ambiente Masculino Hostil

Os militares do forte não se esforçam nem um pouco para acolher as duas jovens. Elas precisam ficar trancadas em um quarto para a própria segurança. As duas, porém, percebem que há algo de estranho. Os mantimentos não chegam há tempos no local, o que exige um racionamento de comida. Além disso, parece existir um segredo guardado no interior do local.

Um lobisomem aparece nos sonhos das irmãs. A criatura, porém, longe de ser um delírio, se faz presente e morde Ginger, em uma reconstrução dos acontecimentos do primeiro filme. As irmãs escondem o fato com medo da represália, mas buscam uma resolução, pois já sabem qual será o destino de Ginger. O roteiro remete aos conhecimentos dos nativos-americanos, contando inclusive com uma cena em que Brigitte e Hunter entram em um transe premonitório.

A revelação é a de que o tal lobisomem do forte é o filho do comandante que todos acreditavam estar morto. Assim como em Ginger Snaps (2000), a transformação masculina não possui uma aparência nada agradável. Ginger não fica dessa forma em momento algum, aliás, nesse filme em especial, sua transformação é bastante diferente.

O lobismenino monstruoso

A Força Feminina

A união das irmãs continua sendo o foco, mesmo no terceiro filme. Um ponto positivo para a franquia, que conseguiu manter a sua essência nos três filmes. A transformação de Ginger é bem menos monstruosa e mais emancipadora. Ela não vira uma criatura entre o humano e a fera selvagem. A Ginger do terceiro filme se torna uma mulher poderosa que controla outros lobisomens ao mesmo tempo em que não perde o contato com sua irmã.

Brigitte também possui mudanças visíveis. Sua aparência não mais denota a timidez e a introspecção. A submissão em relação à irmã foi abandonada no primeiro filme. As duas agora agem em pé de igualdade, e é justamente por isso que elas são bem sucedidas.

Brigitte em Possuída 3: O Início

Na imagem acima vemos uma Brigitte mais atuante. Seus cabelos não escondem mais o seu rosto, como nos dois primeiros filmes. É realmente incrível como o roteiro consegue manter a personalidade da personagem ao mesmo tempo em que a transforma. Sua emancipação não chega de forma caricata ou artificial. A nova Brigitte é uma excelente personagem.

O final reescreve aquele do primeiro filme. Se em 2000 fomos apresentados a uma conclusão pessimista, em 2004, os roteiristas nos trouxeram um final mais alegre e menos fatalista. É claro que esse terceiro filme não atinge a mesma qualidade do primeiro, porém ele apresenta uma versão bastante interessante dos mesmos acontecimentos. Um novo olhar que foi muito bem-vindo.

 

O Que Resta de Ginger Snaps?

Em outubro de 2020 foi anunciada pela Variety a produção de uma série de TV baseada no primeiro filme. A produção ficará por conta da Sid Gentle Films, responsável por Killing Eve (2018-) e John Fawcett retorna para a franquia como produtor executivo. Aguardamos ansiosamente pela estreia.