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Horror Cósmico, Lovecraft e Racismo

         A partir do momento em que o homem começou a perder o medo do intangível, do sobrenatural e das crenças cristãs, a literatura e outras formas de artes se encontraram num momento em que era necessária a criação de novos tipos de formas para incomodar e assustar os consumidores de suas obras. Logo, uma vertente chamada weird fiction (ou ficção estranha, em livre tradução) se formou. Vale ressaltar que o horror não é a única vertente da WF mas, talvez, seja a mais abordada e conhecida.
         Na ficção estranha somos apresentados a horrores inenarráveis como também a monstros que a nossa vã consciência não poderia compreender, coisas tão incompreensíveis que nos fariam perder qualquer tipo de esperança ou outro sentimento de pertencimento, dando lugar apenas ao vazio. Além dos contos do famoso escritor Edgar Allan Poe, “Os Salgueiros” de Algernon Blackood são um bom exemplo do que era a weird fiction.
         Mesmo sendo seu subgênero mais conhecido, o horror cósmico é mais comumente classificado como um desdobramento da weird fiction. Entre as principais características do então chamado horror cósmico, estão: a insignificância do ser humano de acordo com o universo como a impotência e a incapacidade de entendimento dos acontecimentos e figuras que normalmente levam os personagens a loucura ou a morte através do suicídio.
         O termo Weird Fiction, se formou e se popularizou em meados do século XIX. Época em que o momento político era extremamente complicado, principalmente em respeito a grupos de origem não brancas. De 1861 a 1865 a Guerra Civil Americana eclodiu e chegou ao seu fim. Os estados do sul foram derrotados pela União dos estados do Norte que lutavam, entre outras coisas, pela abolição da escravatura. Os Estados Unidos estavam num processo de integração do povo preto que acabara de ser libertado, pós-Guerra Civil.
Porém, com o slogan de “SEPARADOS, MAS IGUAIS” a integração era completamente incongruente. Assim surgiu a lei Jim Crow, que tratava o negro como um semi-cidadão, não sendo merecedor de frequentar os mesmos locais que brancos como ônibus, banheiros, bebedouros, bairros etc. O racismo estrutural imperava e, de acordo com algumas tendências filosóficas da época, existiam diferenças físicas, biológicas e psicológicas entre brancos e não brancos, complementando a segregação em todos os âmbitos sociais.

Bebedouros separados para “brancos” e “negros”.

         Um pouco depois disso, mas ainda em um ambiente completamente absorto no racismo globalizado, em 1880, nasce Howard Phillips Lovecraft. Vindo de família rica, teve a melhor das educações e sempre teve um irrestrito acesso a literatura devido à enorme biblioteca de seu avô. Ao crescer, decidiu se enveredar pelos campos da literatura e, mesmo sem conseguir a fama que pretendia em vida, teve uma inenarrável importância no subgênero que ele ajudaria a cunhar e fortificar, o horror cósmico, que para Lovecraft, seria algo como “a ficção na qual o horror que se choca com o ser humano é tremendamente superior à sua capacidade de suportá-lo”.

H. P. Lovecraft

         A falta de significado para a vida, a inexistência de um ser benevolente que domina o universo e o caos incontrolável que se sucedem em várias das histórias dessa vertente vão muito ao encontro da filosofia do niilismo, doutrina que usa do maior dos ceticismos para enxergar a realidade. Em seu core etimológico “niilismo” significa “a morte do sentido”. No terror lovecraftiano, como ficou conhecido, a falta de resposta aos questionamentos humanos é elevada ao seu máximo, já que as respostas obtidas de nada mudam a insignificância do homem. Porém, apesar das semelhanças, no terror cósmico a crença é fundamental.
         Segundo a mitologia grega, antes de qualquer coisa, existia o Caos (Khaos). O primeiro Deus, descrito como o vazio, o abismo escuro. De Caos surgiu todo o resto, a terra, os demais deuses, os animais, os humanos. A partir da criação dos mitos, crenças e demais escolas de pensamento, o vazio foi deixado de lado. O problema é que, por não ter mais consciência sobre isso, não conseguimos adequar nossos pensamentos quando nos deparamos com algo que deriva do caos primordial. Um dos entendimentos do que seria o “cósmico” do horror é justamente este: o universo é infinitamente maior, mais sombrio e poderoso do que jamais conseguiríamos sequer cogitar.
         Embora seja inegável a importância de H.P. Lovecraft ao gênero do terror e da literatura em geral, é também impossível negar o tom racista, xenofóbico e homofóbico de suas obras. Em vários momentos podemos enxergar que alguns de seus maiores medos vinham de, ao analisar com cuidado o que ele escreve, pessoa negras, imigrantes ou homossexuais. E isso está na essência do “horror indescritível” do escritor.
Em “O Chamado de Cthulhu”, um dos mais celebrados contos do autor, somos apresentados uma entidade cósmica milenar sendo despertada e cultuada por bárbaros membros de um clã perigoso e pavoroso. Lovecraft os descreve dessa forma:

“[…] os prisioneiros provaram todos serem mestiços ordinários e aberrações mentais. A maioria era de marinheiros, alguns negros e mulatos, em grande parte dos caribenhos ou portugueses de Cabo Verde. […] Por mais degradantes e ignorantes que fossem, as criaturas mantinham uma surpreendente coerência em relação à ideia central de sua ceita repulsiva.” pag. 136 (O Chamado de Cthulhu e outros contos).

         Os mestiços, negros e “mulatos” eram consideradas grandes aberrações. Todos os que cultuavam Cthulhu eram não brancos. Feições animalescas, faziam suas festas, danças e selvagerias em devoção a entidade. Habitavam locais que homens brancos nunca foram.


         Tanto em sua vida profissional quanto na sua vida pessoal, Lovecraft se orgulhava de suas posições eugenistas e pensamentos supremacistas. De acordo com o S.T. Joshi, escritor da biografia de Lovecraft, em vários momentos ele escrevia sobre como tinha orgulho por não se misturar com inferiores, sobre como ele era superior a tudo e a todos que não compartilhavam de sua genética privilegiada e de como, por exemplo, se envaidecia por ser antissemita.
         Com cartas escritas pelo mesmo, ele expressava todas as suas posições racistas e opressoras da forma mais comum possível. Em uma carta endereçada à sua tia, segundo o escritor Michel Houellebecq em “H. P. Lovecraft: Against the World, Against Life”, Lovecraft se referiu a pessoas negras como “chimpanzés”.
A xenofobia, como citada no trecho acima, também é uma marca registrada em vários contos do autor. Em “O Horror em Red Hook” temos uma leitura lovecraftiana sobre o malefício da “invasão” de imigrantes dentro do recanto branco e perfeito. O livro é todo pautado dentro da xenofobia do autor. Em um trecho do conto Lovecraft fala:

“A população é um emaranhado e um enigma incorrigível; elementos sírios, espanhóis, italianos e negros chocam-se uns com os outros, e fragmentos de cinturões escandinavos e norte-americanos não vivem muito longe. Trata-se de uma babel de sons e sujeira lançando exclamações estranhas […].” pag. 6.

         Apesar de tudo isso, de ser assumidamente um preconceituoso de marca maior, pouco se falava (questão que até hoje é menos falada do que deveria) sobre esse lado deplorável do escritor. O mundo do entretenimento foi dominado por referências as suas obras como Ricky and Morty (com o Cthulhu aparecendo na abertura), escritores como Stephen King e seu filho, Joe Hill, e grandes diretores e roteiristas como Guillermo del Toro e John Carpenter, sendo este último um grande contador de histórias de horror cósmico. Além disso, o terror lovecraftiano está presente em diversos jogos, livros, RPGs etc.
         Entre 2019 e 2020 houve algumas obras que adaptaram, algumas de forma mais livre, o horror cósmico. “A Cor que Caiu do Espaço”, um dos mais famosos contos do escritor, foi abordado em diversas obras cinematográficas, a mais recente sendo o filme de 2019 estrelado por Nicolas Cage. O filme que traz o conto para os dias atuais narra a história de uma família que tem sua vida mudada quando um meteoro cai no quintal de sua fazenda. O meteoro (que desaparece pouco tempo depois, absorvido posteriormente pela terra) é responsável por apresentar uma nova cor ao mundo (que virou um roxo-róseo no filme). Porém, aos poucos, a “cor” toma conta de todo o local, inclusive da mente de todos os integrantes da família.
         Apesar de ser uma adaptação livre, o filme é bem fiel ao que propõe o conto. Toda a atmosfera mística (forçada, sim, em alguns momentos como na filha bruxa e na aparição do Necronomicon, livro famoso dos contos de Lovecraft) e a escalada da loucura com os ótimos momentos de gore e horror corporal fazem a adaptação ser válida de assistir e aborda de forma legal a loucura do inexplicável realçada de esclarecimento celestial que algumas obras do weird fiction costumavam abordar.
         Outra obra recente foi o longa Ameaça Profunda (um dos poucos filmes lançados no cinema em 2020 devido à pandemia). Nesse longa (SPOILER pra quem não viu) temos a presença da criação mais famosa de H.P., o Cthulhu em pessoa (ou em deidade) aparece e ele é o causador de toda a destruição que acompanhamos na estação submarina onde a personagem da Kristen Stewart está tentando escapar.
         A produção é bem intrigante. Extremamente claustrofóbico, devido à situação-limite, o filme consegue prender bastante ao sofá. Tem inclusive um ponto positivo e negativo em comum: a resolução das imagens subaquáticas e a câmera tremida que ajudam na imersão também fazem perder completamente a perspectiva de algumas sequências durante o filme. Mas ao todo é uma ótima apresentação da criação mais célebre do Monteiro Lobato de Providence ao mundo tecnológico do século XXI.
         Por último, mas não menos importante, uma das mais recentes minisséries da HBO que conquistou uma legião de fãs. Território Lovecraft. A série é baseada no livro de mesmo nome do escritor Matt Ruff que, em uma narrativa em formato de contos, fala sobre pessoas que além de enfrentar uma força poderosa que tenta os derrotar a todo momento e que parece ser onipotente e onipresente, o racismo, também acabam entrando em um universo onde mágica existe e precisam aprender a sobreviver num mundo com (também) ameaças sobrenaturais.
         A minissérie é produzida e protagonizada por pretos e isso é mais do que um tapa na cara do Lovecraft. Apesar de gosto ser algo muito pessoal, qualidade da produção e as atuações são indubitavelmente excelentes. Particularmente, demorei um pouco a me apegar a série, mas ela (junto a Watchmen) são as fantasias mais importantes na fantasia antirracista atual (embora, ainda assim, possuam críticas consideráveis em abordagem e produção).


         Durante os dez episódios exibidos, a série mesclou realidade (como por exemplo o caso real do menino Emmett Till, assassinado por policiais brancos – cena infelizmente ainda recorrente) com a fantasia lovecraftiana. O projeto é bem diferente do material em que se baseia e isso é interessante pois faz com que existam duas obras com similaridades e particularidades entre si que podem agradar a públicos diferentes. Jordan Peele é um dos principais nomes envolvidos no projeto que, junto com seus longas Corra, Nós e sua versão de Além da Imaginação, busca ressignificar o que é o terror para pessoas negras, usando da fantasia para tocar em feridas reais de nossa sociedade.
         Atualmente vivemos em um momento de ressignificação de ídolos, de identidade. Buscar saber quem são as pessoas que moldaram nossa cultura vai além do que prega a banalização da “cultura do cancelamento”, é necessário saber nossa história para que não acabamos repetindo-a. Saber que H.P. Lovecraft é racista – espero – vai fazer com que muitos consumam suas obras com “antenas ligadas”, problematizando. Não apenas engolindo o que está sendo transmitido, mas compreendendo.