É praticamente inevitável. Todo ano a divisão de categorias no Globo de Ouro acaba gerando algum tipo de polêmica/piada graças a indicações de filmes que não se “enquadram” propriamente naquelas categorias. Com a indicação de “Corra!”/”Get Out!” como comédia no Globo de Ouro (a lista oficial de indicados não saiu ainda, mas já é quase certa a sua indicação a partir dessa submissão) a internet passou mais uma vez a questionar a premiação da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood.
Como seria muito ingênuo da parte de qualquer um atirar para um culpado específico, acredito que para fazer uma melhor análise de tal situação é necessário retornar um pouco, analisar a forma complicada como a própria premiação se constrói em sua divisão de categorias, bem como as próprias pretensões do filme para termos uma melhor visão do tipo de problema que está na nossa frente.
Os Problemas de Categorizar Gêneros Cinematográficos
Categorizar gêneros cinematográficos é sempre uma grande dificuldade, desde discussões sobre qual a essência do “cinema Noir”, bem como exemplos mais modernos que mesclam gêneros cinematográficos para criar um produto só (“Em Ritmo de Fuga” poderia ser considerado uma espécie de musical?), ou mesmo a já pisoteada polêmica do pós-horror, que escancara o tipo de preconceito de gêneros cinematográficos populares, como o terror. A discussão da falta de precisão para se enquadrar filmes em caixinhas de gênero é muito complexa por ser inevitavelmente arbitrária e mesclar teoria e prática de cinema em seu debate, o que se reflete claramente na temporada de premiações, na qual longas com uma carga dramática “mais pesada” (leia-se: filmes sobre a Segunda Guerra Mundial) tendem a despontar como favoritos instantaneamente.
Por exemplo, na categoria “Melhor Filme – Drama”, do Globo de Ouro, vemos uma mistura de gêneros cinematográficos tratados de “forma séria” (não confundir com seriedade), sendo que filmes de fantasia, biográficos, filmes de época, épicos e estudos de personagem podem ser vistos juntos numa mesma subdivisão, desde que seu tom seja considerado “sério” – e se tomarmos como exemplo o ano de 2010 da premiação, nota-se a presença de “Guerra ao Terror”, “Avatar” e “Bastardos Inglórios”, ou seja, obras muito diferentes entre si, mas que possuem uma determinada carga dramática (de novo, numa pretensa seriedade), seja por sua forma ou por seu conteúdo base.
“Bastardos Inglórios”, inclusive, tem uma pegada mais cômica que caso fosse de outro realizador que não Tarantino, ou mesmo retratasse outro contexto que não nazistas e Segunda Guerra Mundial, certamente o Globo de Ouro consideraria indicar como melhor comédia (ainda que eu não concorde com tal perspectiva, visto que é um filme com elementos cômicos, não com função de gerar o riso).
O que nos leva a categoria de “Melhor Filme – Comédia ou Musical”, a que verdadeiramente faz com que, todos os anos, cinéfilos do mundo todo revirem os olhos e se perguntem “Porqueeeeee?” quando alguns filmes são indicados. Se em “Drama” as coisas fluem mais naturalmente para o público, que já este está acostumado a ver o englobamento de filmes com gêneros e nuances diferentes em outras premiações (como o oscar), em “Comédia ou Musical” tudo já se torna mais problemático ao estabelecermos que uma categoria com um dramalhão musical, estilo ópera, como “Os Miseráveis” (que não tem nada de comédia e foi o vencedor daquele ano), no mesmo ano em que “Moonrise Kingdom” era concorrente também.
Mas se o leitor estiver pensando agora “Mas a categoria é de Comédia OU Musical. Não precisa ter os dois elementos juntos!”, explico: o real problema de tal junção é que a formação da categoria parte de um pressuposto implícito de que há uma grande proximidade entre filmes de comédia e musicais. Basta que imaginemos uma nova forma de categorização, como “Drama ou Musical” para que percebamos como isto pode soar estranho, já que estamos acostumados a imaginar os musicais com a leveza da Era de Ouro de Hollywood e não com o cinismo dos musicais a partir da Nova Hollywood.
Partindo de uma generalização e um senso comum, associa-se a exuberância e estilização enérgica de grandes musicais com o tipo de entretenimento de uma comédia (que por si só já é plural). É mais do que claro que, ao levar tais elementos em consideração, estes tipos de filmes se encontram isolados por não serem levados a sério, não em questão de tema, mas de tom. É fácil, assim, notarmos como comédias são constantemente menosprezadas em premiações – sendo que “La La Land”, por exemplo, não despontou como favorito a premiações por ser um musical, mas sim por ser um musical que falava da industria cinematográfica em toda sua idealização e nostalgia.
Como “Get Out!” se tornou uma comédia
O fato é que, constantemente a categoria de comédia ou musical se vê com 3 bons filmes e outros 2 que estão ali para preencher vagas, o que a torna mais “fácil” de ser conquistada e alavancar outros prêmios, uma tática adotada por várias distribuidoras e Estúdios que desejam ver seu filme na corrida pro oscar (e o acúmulo de prêmios contribui para isso), sendo o caso da obra prima de Jordan Peele, “Get Out!”. Distribuído pela Universal, “Corra!” foi submetido pelo próprio estúdio como uma comédia no “Globo de Ouro”, mesmo que nem sempre tenha encarado o filme assim.
Antes de ser lançado, o longa possuía uma clara campanha de marketing mais forte que o colocava como um filme de terror tradicional, mas com uma discussão racial em sua premissa. Aos poucos, com o filme sendo exibido, foi sendo destacada a utilização de elementos cômicos por parte da narrativa, com as pessoas confundindo “comédia” com a sátira multifacetada proposta pelo filme que, utilizando de inúmeros recursos dramáticos em sua construção, é quase impossível de ser categorizado com exatidão. Basta notarmos como o filme é colocado por alguns dos maiores sites de cinema do mundo:
A Mistura de Mistério, Suspense, Comédia e Terror é a proposta do longa em si, e não enquadrar-se em algum gênero específico. Colocá-lo como comédia é anular tal perspectiva e não perceber que a princípio, tal categorização é absurda devido ao desenvolvimento de linguagem do filme, que aposta em recursos básicos do Horror. Assim, se fossemos categorizar “Corra!” em algum gênero, este deveria ser o Terror por uma questão de proporcionalidade, mas ainda que isto fosse feito seria um erro reducionista, basta observarmos até mesmo um tweet do diretor:
Note como o comentário divertido de que “Corra!” é um “documentário”, funciona perfeitamente para reafirmar o longa como uma obra pós-moderna, impossível de ser classificada e que une realidade e ficção sem qualquer distinção – e se você acha tal perspectiva absurda, recomendo que assista documentários excepcionais de Eduardo Coutinho, ou mesmo “O Homem Urso” de Herzog, para perceber como é possível narrativamente unir ficção e realidade (Coutinho em sua própria proposta de linguagem em “Edifício Master”, Herzog na forma como conduz de forma ensaiada as entrevistas de seu documentário).
No centro de tais polêmicas percebe-se a ganancia de um estúdio para abocanhar prêmios e a ignorância da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood ao não questionar tal decisão, já que segundo as regras da premiação, a associação pode escolher indicar o filme em outra categoria que não a idealizada pelo estúdio.
E o que fica escondido por tudo isso é o descaso com os temas de racismo no filme, já que de maneira alguma o longa é tratado com a mesma pretensa seriedade que obras sobre o holocausto no quesito distribuição e premiação, por exemplo. “Não há nada de engraçado no racismo” disse o ator Lil Rel Howery em sua conta do twitter, pontuando algumas outras afirmações sobre o próprio caráter da obra:
Ainda, Jordan Peele também veio a público (em entrevista com o IndieWire) dizer qual a real intenção e base argumentativa de “Corra!”, atrelando-a a própria experiência subjetiva da realidade de uma minoria:
“Eu acho que o problema aqui é que o filme subverte a ideia de todos os gêneros”, disse Peele. “Chamem do que quiserem, mas o filme é uma expressão da minha verdade, minha experiência, da experiência de muitas pessoas negras, e minorias. Qualquer um que se sinta como ‘o outro’. Qualquer discussão que limita o que (o filme) é o coloca numa caixa.”
Conclusão
A categorização de “Get Out!” como comédia é um erro por ser reducionista, confundir completamente a dubiedade e amplitude de sua narrativa (bem como não compreender o real caráter de sátira), estabelecendo-se como um reflexo piorado dos problemas recorrentes do Globo de Ouro, bem como evidencia a forma com que os membros da indústria, frente a uma obra provocativa e pouco enquadrável em modelos tradicionais de gênero, não sabem lidar com temas complicados em narrativas complexas.
“Corra!” pode ser sim uma comédia em seus recursos de tom narrativo, mas também é um filme de horror nesse sentido, um drama analítico da sociedade em seus temas, uma sátira cínica e mordaz em sua estrutura e uma obra-prima em sua execução total. Ao ser colocado na categoria de “Comédia ou Musical” devemos compreender que não está em jogo só a falha forma de categorização das premiações, como também o fato de que certos gêneros e tons são encarados com menos apoio e seriedade pela própria indústria cinematográfica.