[ESSE TEXTO CONTÉM SPOILER DE “UM ESTRANHO NO NINHO”]
“Conheça a origem de uma das personagens mais icônicas do mundo”.
Seguindo essa premissa, estreia nesta sexta feira a série Ratched, baseada no filme “Um Estranho no Ninho” (One Flew Over the Cuckoo’s Nest, 1975). A série é um prequel do filme, ambientada em 1947, e mostra a trajetória da enfermeira Mildred Ratched – infância, família e início da carreira – até o momento em que o filme se passa, em 1963.
Para quem não conhece, em Um Estranho no Ninho acompanhamos Randall McMurphy que foi transferido da Penitenciária Rural em que estava cumprindo pena para ter sua sanidade mental avaliada em um hospital psiquiátrico. Porém McMurphy, alheio a gravidade de seus atos, transforma toda a enfermaria em um centro de confusões para a equipe do hospital, em especial a enfermeira chefe, Ratched.
O filme, baseado em um livro que demonstra ainda mais as perversidades de Mildred, engana muito o espectador devido ao tom cômico empregado na maior parte de sua duração. A gravidade das ações “subliminares” de Ratched, as terapias de choque, a intensa submissão e maus tratos que os internos sofrem e o descarado autoritarismo institucional são propositalmente ofuscados pelo tom brincalhão de Jack Nicholson, brilhante em seu papel (já que, convenhamos, ele tem uma bela cara de louco) e seus coadjuvantes problemáticos e encantadores.
Todo o trabalho terapêutico da enfermeira é completamente focado nos gatilhos dos seus pacientes. Ela “acredita que está fazendo o bem para as pessoas, mas ela se sente abusada e machucada quando questionam sua autoridade” como disse sua intérprete, Louise Fletcher em entrevista ao Independent em 2016. Ela acredita que “enfiando o dedo na ferida” vai conseguir extrair a sanidade de seus pacientes, ela acredita que mostrando os monstros em carne viva vai conseguir exorcizá-los, o que não é verdade. É importante salientar que ela tem total ciência de seus atos, como mostra no final ao fazer com que o jovem Billy (após realizar algo que amenizou sua “gagueira” por alguns instantes) se sinta tão culpado que decida tirar sua própria vida.
O tom mais grave é de fato abordado nos minutos finais do filme, quando o personagem de Nicholson sobre uma lobotomia como consequência de tentar matar Ratched. Todos os acontecimentos dos últimos vinte minutos de filme são tão certeiros e dolorosos quanto socos no estômago. O filme foi um dos poucos a realizar a faceta de conquistar os cinco principais prêmios do Oscar: melhor filme, melhor roteiro, melhor direção (para o tcheco Miloš Forman), melhor ator (Jack Nicholson) e melhor atriz (para Louise Fletcher, a enfermeira Ratched).
Em 2017 surgiram as primeiras notícias sobre Ryan Murphy, um dos mais prolíficos diretores e produtores do entretenimento, repetir sua colaboração com uma de suas maiores estrelas, Sarah Paulson, em uma série baseada no longa de 1975. Murphy e Paulson já haviam trabalhado juntos em várias temporadas de American Horror Story e em O Povo vs. OJ Simpson: American Crime Story, pela qual Sarah ganhou os maiores prêmios de 2017 devido a sua interpretação de Marcia Clark. Vale ressaltar que após um milionário contrato, Murphy se tornou um dos maiores produtores de conteúdo da Netflix, já tendo lançado duas temporadas da comédia de tom satírico The Politician e o drama “baseado em fatos reais”, Hollywood.
Enquanto Um Estranho no Ninho tinha um tom mais leve até seus minutos finais, Ratched promete ser tensa do começo ao fim. A trama apostará em abordar os traumas de Mildred e todas as experiencias que participou e conduziu até se tornar quem ela se tornou. A institucionalização e a condução dos tratamentos psicológicos e psiquiátricos evoluíram muito após a Segunda Guerra Mundial, os movimentos de direitos civis procuraram acolher essa parcela extremamente marginalizada da população e a partir de 1990 conseguimos encontrar uma condição mais aceitável de tratamento e internações nessas instituições. Porém, em meados de 1940, uma das maiores novidades da medicina era a lobotomia. A promessa de tratar indivíduos com “distúrbios e anomalias tais quais homossexualidade, distração, teimosia e desobediência” tornando-os dóceis era uma das revoluções mais faladas nesse tempo.
Ratched desenvolve todo o seu horror ai. Minorias sendo perseguidas, usadas como cobaias de tratamentos completamente insustentáveis ética e moralmente, o uso exacerbado de drogas para acalmar os pacientes, entre outros tipos de abordagens, vão ser mostradas na série da Netflix. Pelos trailers conseguimos ver que Ryan e seus co-diretores vão continuar usando e abusando da estética surrealista de American Horror Story, com várias câmeras em ângulos não naturais, o uso de cores para demonstrar os perigos e as emoções dos personagens e muito, muito body horror. É impossível não relacionar a nova série com a segunda temporada de AHS: Asylum que também se passa numa instituição psiquiátrica com um médico assassino e também estrelada por Paulson.
Além da sempre esplêndida Sarah Paulson no papel principal, no elenco ainda temos Cynthia Nixon (Sex and The City), Judy Davis (Maridos e Esposas), Vincent D’Onofrio (Demolidor – Netflix), Sharon Stone (Instinto Selvagem) entre figurinhas carimbadas de Ryan Murphy como Finn Wittrock (American Horror Story) e Jon Jon Briones (American Crime Story)
O filme é um clássico e merece ser visto e/ou revisto. A utilização de um hospital psiquiátrico real com pacientes reais fazendo figuração, todo o apreço das atuações principais e em especial dos coadjuvantes Brad Dourif (que posteriormente viveria e dublaria o icônico Chucky) e Will Sampson o tornam um clássico obrigatório do cinema. Agora, precisamos esperar o dia 18/09/2020 para entendermos se Ratched (que já foi renovada para sua segunda temporada) será tão maliciosa e manipuladora na Netflix quanto em sua obra original.