Celebrado autor de fantasia, Felipe Castilho reúne em novo livro seu vasto repertório de referências ao folclore, à mitologia e às culturas pop e trash. Serpentário é sua primeira obra de horror e se passa em um cenário desnorteante: a Ilha das Cobras, um lugar hostil e enigmático repleto de histórias sombrias. Com alta concentração de serpentes por metro quadrado, o local esconde segredos perturbadores e também as lembranças perdidas de um grupo de amigos.
Confira a entrevista com Felipe Castilho:
O ano de 2019 foi marcado por produções brasileiras de horror, ou que flertam com ele de certa forma, como Bacurau e O Clube dos Canibais. Serpentário, nesse sentido, também é um legítimo horror brasileiro. Como você acha que ele se insere no contexto nacional de medos sociais?
O horror clássico assusta à todos: um psicopata usando uma máscara de pele humana atinge o medo de qualquer um, um homem deformado que invade os sonhos alheios também. Acho que o horror social funciona numa via de mão dupla: por um lado ele só assusta parte das pessoas, porque a parte que não se sente assustada é a que de fato aterroriza o próximo; ou a que está se abstendo de se importar com ele. E essa parte vai sentir um medo diferente quando se perceber retratada como o fator monstruoso do filme ou do livro; normalmente essa parte também vai chamar o escritor ou o diretor de esquerdopata, comunista, etc. Enfim, e eu comecei a escrever Serpentário num 31 de Dezembro, e o clima do dia (que eu detesto) meio que tomou conta do texto. Nós já vimos muita gente “toda vestida de branco” cometendo atrocidades, e em Serpentário, de 2018 para 2019, tem um pessoal que está fazendo o mesmo (à longo prazo).
A começar pelo nome, seu livro é muito marcado pela figura da cobra, da serpente. De onde veio essa simbologia?
Como símbolo, a serpente tem essa dualidade: pode ser a tentação e a traição, assim como pode ser a longevidade e a sabedoria. Em grande parte de Serpentário os personagens fazem coisas que colocam o leitor em cheque: seria cômodo se eles simplesmente gostassem ou odiassem aquelas pessoas, mas lá estão elas, sendo boas após fazerem coisas muito ruins, ou fazendo boas ações para no instante seguinte demonstrarem alguma fraqueza ou preconceito. Eu queria que a narrativa serpenteasse, e quanto mais eu observava ou pensava em serpentes, mais ficava claro que o livro deveria se comportar como uma até engolir a própria cauda.
A trajetória dos personagens é muito bem trabalhada. Elas foram inspiradas em experiências reais?
De todos os traumas que Carol passou, o único que eu também experimentei foi o de trabalhar em livrarias. Eu também fui para a Ilha das Couves apos pechinchar com um barqueiro (que não estava nu), mas foi um passeio agradável sem nenhuma morte, pelo que eu me lembro.
Por que trazer o nazismo para o litoral paulista?
Tem uma galera otária que anda insistindo em trazer o fascismo para os dias atuais, eu só coloquei eles numa roupa de praia. Mas também quis usar como background as várias histórias de oficiais nazistas condenados ou fugitivos que vieram parar na América do Sul, como o próprio Josef Mengele, que morreu afogado aqui no Brasil.
Paulo é um personagem bastante comum na realidade brasileira. Filho de uma empregada doméstica, ele é envolvido pelos “patrões” nas tarefas quotidianas. Apesar da amizade com Mariana, Caroline e Hélio, Paulo não pertence ao mesmo mundo que eles. Foram as dificuldades enfrentadas na infância que fizeram com que a trajetória dele fosse diferente da dos outros?
Acho que muita gente de classe média vê a miséria e a pobreza como default, e não como responsabilidade deles e de quem está no topo, pisando nos de baixo (incluindo na classe média, que só pensa estar no topo das coisas). Do tipo “é algo tão horrível que não tem o que se fazer, temos que nos acostumar”. Só que quem pensa isso não passa fome. Caroline, Hélio e Mariana, uns mais a contragosto do que outros, acabam embarcando no consenso de que, “se alguém tiver que morrer que seja o mais pobre, já que ele já não tem muita coisa, mesmo”. Vejo gente usando esse argumento na vida real, uns com palavras mais rebuscadas do que outros. Todo o caminho diferente do Paulo, das partes mais humanas às mais sombrias, foi baseado na empatia que ele estava disposto à sentir, que ele havia sido ensinado à ter.
Qual é a metáfora presente na ilha misteriosa?
Acho que cada leitor pode buscar a sua. A ilha, o Homem de Branco, o destino de alguns personagens: tudo isso está totalmente aberto para a interpretação de cada um de maneira ampla, assim como a simbologia da serpente.
Os ambientes descritos no livro são muito palpáveis. As ações acontecidas nos anos 1990 nos dão um sentimento de nostalgia. Como você sobreviveu a essa década tão maluca?
Ah, a gente tomava uma colherinha de veneno todos os dias, então ninguém questionava muito a aleatoriedade dos anos 1990. Era Gretchen dançando com Van-Damme, Tiazinha e Feiticeira em programa pra família… Sempre me pergunto como os programas de “jornalismo” sensacionalista passavam tão cedo.
Qual seu filme de terror preferido (com ou sem cobras)?
Ah, não consigo escolher um só, não! Tenho um carinho gigantesco por Alien, que para mim é um terror de ficção científica com uma aura noir investigativa… Também adoro O Silêncio dos Inocentes. Dos mais recentes, amei Corra! do Jordan Peele, Hereditário do Ari Aster e Train to Busan, que se tornou um dos melhores filmes de zumbis que já vi (nas plataformas de streaming vocês encontram como Invasão Zumbi, que é um nome bobo para um belo filme).
Você poderia indicar a nossos leitores outras obras de horror nacional que você considera essenciais?
Eu me empolgo em entender o que está acontecendo atualmente na produção nacional, acho tão importante quanto olhar para o passado. Gosto muito da escrita do César Bravo e também do Wagner Willian, com Silvestre, e o Dudu Torres, com Raiz. São dois quadrinistas que mexem com um lado do horror que gosto demais.
Felipe Castilho é autor de livros de fantasia e roteirista. Conhecido pela série O legado folclórico, que une mitologia brasileira ao mundo dos videogames, foi indicado ao Prêmio Jabuti 2017 pelo quadrinho Savana de pedra, criado em parceria com Tainan Rocha e Wagner William. Também escreveu Ordem Vermelha: Filhos da Degradação, seu primeiro livro publicado pela Intrínseca. Mora em São Paulo.