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The Hunt (2020) e a Falsa Dicotomia do Bipartidarismo Estadunidense

O que ‘The Hunt’ (2020) pode nos dizer sobre o atual momento político dos EUA?

            Como sei que também é o caso para muitos amantes do horror e do cinema em geral, eu adoro uma boa sátira. Filmes como “Dr. Fantástico” (1964), “Laranja Mecânica” (1971) e “Corra!” (2017) são apenas alguns poucos exemplos dentre uma vasta gama de títulos que utilizam-se de um humor cínico e surrealista para comentar sobre o absurdo de determinadas realidades sociais e políticas. A mais recente adição a este grupo é ‘The Hunt’, filme estadunidense de 2020, que chegou de forma tímida aos cinemas brasileiros em maio sob o título “A Caçada”. Embora incomparável aos demais filmes listados em termos de qualidade cinematográfica e até mesmo de profundidade crítica, ‘The Hunt’ esbanja ácidos e perspicazes comentários sobre nossa absurda realidade política ao longo de seus breves 90 minutos de duração.

             Nenhum filme foi tão capaz de me provocar e suscitar reflexões no ano de 2020 como o título dirigido por Craig Zobel e roteirizado por Nick Cuse e Damon Lindelof. Desde que assisti a ‘The Hunt’ pela primeira vez há uma semana, continuo pensando sobre seus elementos semânticos, narrativos e simbólicos, bem como o que ele tem a dizer sobre o momento atual dos EUA e do mundo. Tais dúvidas e inquietações foram (parcialmente) resolvidas apenas com uma segunda visita ao mundo da Caçada, uma experiência que, devo dizer, provou-se ainda mais enriquecedora do que a primeira.

           Antes de iniciar o texto em si, acredito que alguns disclaimers sejam necessários: primeiro de tudo, ressalto que a análise contida neste breve (ops kkkkk) texto não trata-se de uma tentativa de compreender a mente dos criadores do filme e “olhar por trás da cortina”, desvendando seu significado e expondo um “final explicado”. Fiz questão, inclusive, de pesquisar o mínimo possível sobre a biografia dos roteiristas e diretor e seus posicionamentos políticos. O que se segue abaixo é uma análise inteiramente minha sobre o que, como historiador, depreendo do filme e de seu contexto de lançamento, buscando uma interpretação sobre a atual realidade política dos EUA a partir desta obra cinematográfica. Vamos então ao texto!

Contexto de lançamento

         De forma extremamente significativa, o filme produzido pela Blumhouse e distribuído pela Universal Pictures foi, em um primeiro momento, vítima da convulsão social estadunidense que ele próprio satiriza. Inicialmente previsto para estrear nos cinemas dos EUA em Setembro de 2019, ‘The Hunt’ teve seu lançamento cancelado pela Universal após uma série de polêmicas. O primeiro motivo desta decisão foram os massacres ocorridos em Ohio e no Texas em Agosto de 2019, que criaram um clima muito pouco favorável ao lançamento de uma sátira com alto nível de violência e constante exibição de armas de fogo. O segundo veio com um suposto vazamento de roteiro e críticas veiculadas no canal ultraconservador Fox News, chamando o filme de “doente” e “perverso”. A pá de cal, contudo, ainda viria na forma de um tweet do então presidente Donald Trump que, com a retórica agressiva e subtons racistas de sempre, afirmou que o filme tinha sido feito a fim de “inflamar e causar caos” (a citação completa e um relato detalhado da história podem ser lidos nesta matéria).

            Enquanto Jason Blum, fundador e CEO da Blumhouse Pictures, afirmou que o filme nada mais era do que uma sátira política, semelhante a “Coringa” (2019) de Todd Phillips, o roteirista Damon Lindelof lamentou em entrevista o quanto o filme havia tornado-se “radioativo” após os comentários inflamados do ex-presidente. ‘The Hunt’, por fim, teve sua data de lançamento nos EUA redefinida para 13 de março de 2020, sendo um dos últimos filmes a chegar aos cinemas antes do caos completo criado na indústria cinematográfica pela pandemia. Com um retorno financeiro baixo, de pouco mais de 11 milhões de dólares para seus 15 milhões de orçamento, o filme não foi capaz de repetir a mesma história de sucesso de outras produções da Blumhouse, e mesmo sua relevância posterior em círculos de crítica e debate cinematográficos foi menor do que a esperada. Mas, afinal, o conteúdo gráfico e narrativo do filme justifica a enorme polêmica gerada antes de seu lançamento?

Uma sátira simbólica dos EUA sob a presidência Donald Trump (2016 – 2020)

           Assistindo ao filme, fica muito claro para qualquer um que as posições dos âncoras da Fox News e de Trump são iguais às de seus fanáticos seguidores em redes sociais: absolutamente insubstanciadas. Muito longe de qualquer crítica direcionada especificamente a republicanos ou trumpistas, ‘The Hunt’ retrata tanto os “liberais” quanto os “deploráveis”, os caçadores quanto os caçados, como as visões estereotipadas e caricaturais que ambos os lados constroem uns dos outros. Assim como A Caçada foi a concretização de uma piada em um grupo de mensagens, tomada como realidade e disseminada em grupos conspiracionistas sob a alcunha Manorgate (referência ao falso escândalo do Pizzagate), a visão estereotipada de lados antagônicos do debate social estadunidense também tomam corpo como personagens no filme.

            Faz-se importante dizer que, tivesse ‘The Hunt’ sido produzido no cenário brasileiro, eu estaria aqui dizendo o quão perigosa é sua relativização da extrema direita em uma tosca perspectiva “doisladista” isentona de “nem à esquerda nem à direita, para frente”. ‘Bacurau’ (2019), por exemplo, que tem uma premissa relativamente semelhante a sua contraparte norte-americana, acertadamente toma uma posição política mais clara. A análise torna-se um pouco mais complexa, contudo, quando levamos em conta o sistema bipartidário estadunidense, onde qualquer postulante ao Executivo ou ao Legislativo só tem chances reais de eleição quando se filia ao partido Republicano ou Democrata. Ou seja, muito longe de estabelecer críticas a uma esquerda ou a uma direita no debate público, ‘The Hunt’ o faz contra uma espécie de centro-direita mainstream democrata e uma extrema-direita conspiracionista e proto-fascista republicana.

            Espero que, pela descrição acima, minha posição tenha ficado clara o suficiente mas, como não custa nada, reforço: republicanos e trumpistas lá, assim como bolsonaristas aqui, representam o esgoto da política, frutos e atores de instituições antidemocráticas e autoritárias, que, ora nas entrelinhas, ora de forma mais explícita, têm completo desprezo por práticas democráticas e apoiam ideais de cunho racista e fascista. Feita essa observação, é preciso também dizer que embora Trump tenha sido bem-sucedido em mover o partido Republicano ainda mais à direita, o partido Democrata nunca deixou o “centrão”. Prova concreta disso deu-se nas Primárias do partido em 2020, quando um político um pouco mais corajoso e progressista como Bernie Sanders viu uma enorme coalizão de democratas centristas formar-se contra si quando sua vitória parecia possível. Muitos deles certamente preferiam uma nova presidência de Trump do que a eleição de um “socialista”.

             Joe Biden, tratado de forma risível por muitos fanáticos nos EUA e Brasil como um radical de esquerda, nada mais é do que, comparando ao contexto brasileiro, um mdbista, uma figura do mais puro establishment político. Fiz toda esta contextualização para apontar que, embora coloquem-se como antagônicos (e, em sua maioria, de fato o sejam) em muitas pautas sociais e culturais, em assuntos realmente caros a máquina neoliberal e imperial estadunidense, republicanos e democratas são dois lados de uma mesma moeda. O governo de George W. Bush e Dick Cheney deu o pontapé inicial para a Guerra ao Terror e às inúmeras atrocidades cometidas no Oriente Médio e ao estado de vigilância interno, mas obtiveram amplo apoio dos dois lados do “corredor” (inclusive do próprio Biden, quando senador). Barack Obama, eleito sob uma plataforma de renovação e agenda progressista, deixou a presidência com um recorde absoluto de assassinatos por drones e deportações de imigrantes, além de inúmeros acordos suculentos com Wall Street. Em suma, republicanos e democratas são frequentemente apenas um lado mais feio ou mais “agradável” do mesmo Estado imperialista.

          Muito mais do que uma reflexão sobre as atrocidades cometidas durante a presidência de Donald Trump, considero ‘The Hunt’ fruto do conturbado contexto das eleições de 2016 quando, confrontados com a ameaça nacionalista e racista representada pelo ascendente Donald Trump, os democratas apontaram Hillary Clinton como sua candidata. Com altíssima rejeição de todas as demografias e óbvios laços a Wall Street, além de carregar o ônus das desastrosas políticas de segurança da gestão Bill Clinton (1992 – 2000), Hillary Clinton X Trump representava a escolha entre o ruim e o terrível. Este sentimento de não-pertencimento e falta de opções, que ultimamente levou a baixíssima participação eleitoral e a inesperada vitória de Trump no Colégio Eleitoral é o que, na minha opinião, está refletido em ‘The Hunt’: uma falsa dicotomia política. Há muitas diferenças estéticas e retóricas, mas que acabam bastante diluídas em termos práticos.

“Deploráveis” X “Liberais”

 

 

 

 

 

            Falando agora mais especificamente sobre os dois grupos que o filme satiriza, comecemos nossa análise pelos “deploráveis”, termo empregado de forma extremamente controversa por ninguém menos que a própria Hillary Clinton, quando em campanha presidencial. O grupo é a caricatura mais sem imaginação ou nuance proposta pelo filme, justamente porque é difícil superar o surrealismo de sua contraparte real. Os “caçados” gradativamente demonstram serem pessoas terríveis e odiosas, racistas, fanáticos por armas, conspiracionistas, misóginos, homofóbicos, etc. O momento mais interessante do filme no que diz respeito a tais personagens é quando acompanhamos suas fotos e perfis sendo descritas pelos “liberais” ao selecionar para a Caçada os piores dentre aqueles que disseminaram o Manorgate:

PS: Vale a pena pausar a cena em que todos os “deploráveis” são exibidos em um mural na mansão de Athena. Minha teoria pessoal é que a personagem de Emma Roberts foi pensada para representar Ivanka Trump (=

        A representação mais interessante e ácida do filme, contudo, é certamente a dos “liberais” de elite que decidem transformar o Manorgate em realidade, após a piada custar-lhes seus rentáveis empregos corporativos. Para mim, fica muito claro desde o princípio que, ao contrário dos “deploráveis” e da extrema direita, o roteiro de ‘The Hunt’ não está tirando sarro do pensamento progressista ou “politicamente correto” em si, mas de sua apropriação e deturpação pelas elites. Assim como corporações bilionárias que usam de um “politicamente correto” forçado para melhorar sua imagem, o grupo de Athena finge importar-se com pautas raciais, de imigração, gênero, etc., quando na verdade são grandes representantes da abissal desigualdade econômica que dilacera a população da “maior economia do mundo”.

Tal elemento fica muito claro em duas cenas chaves, uma ao começo e outra ao final do filme:

Na primeira, Richard, de longe o mais babaca do grupo, pergunta à comissária de bordo se ela já comeu caviar. À sua negativa, ele responde com um blasé “eu comi um pouco ontem”. Claramente buscando humilhar alguém que considera inferior, insiste e pergunta se a garrafa de champanhe oferecida no voo é a mesma que foi resgatada de um submarino afundado e custa 240 mil dólares. A outra cena vem no clímax do filme, o confronto entre Athena e a protagonista, Crystal, quando a primeira destila seu desprezo quanto a população branca pobre estadunidense.

           Nisso tudo, há um detalhe importantíssimo: com a exceção de um “liberal” de ascendência árabe, que se faz passar por refugiado em dado momento, todos os personagens que se dilaceram na Caçada são brancos. Muito longe de serem representativos da atual demografia estadunidense, tanto “deploráveis” quanto “liberais”, uma faceta mais podre e a outra mais disfarçada, lutam pela supremacia de seu grupo em uma idealizada nação branca. Há, inclusive, uma cena hilária em que um dos “caçadores” propõe a escolha de um homem negro para a Caçada, o que gera revolta entre seus companheiros e uma discussão sobre o que seria mais errado: incluí-lo ou não dentre as vítimas.

            Nesse sentido, a sátira contida em ‘The Hunt’ me lembra muito a tecida por Jordan Peele em “Corra!”, por meio da família Armitage: brancos, ricos e proprietários rurais, os Armitage escondem seu desejo de (literalmente) apropriar-se de corpos negros sob um verniz de arrogante e falsa empatia por sua vivência. Se em “Corra!” o Dean Armitage na brilhante interpretação de Bradley Whitford faz questão de dizer a Chris que votaria no democrata Barack Obama para um terceiro mandato, em ‘The Hunt’ o caricato dono de posto Pop coloca-se contra os racistas dizendo que “aquelas pessoas” haviam sofrido 400 anos de escravidão nas mãos dos antepassados daqueles “pedaços de merda”…… mas não dos seus.

             O ódio de tais personagens em relação aos “caipiras” deploráveis não se dá por conta de suas posições extremistas, mas por “envergonharem” outros estadunidenses brancos com seu baixo grau de educação e pobreza. Nesse sentido, ‘The Hunt’ apresenta uma ótima sátira sobre racista mas ainda muito usada categorização white thrash (“lixo branco”).

Quem sagra-se vitorioso na Caçada?

      Se o filme critica e satiriza tanto caçadores quanto caçados, inteligentemente levando-nos a não nos importarmos muito com as baixas de ambos os lados, para quem devemos torcer? Após o magistral e inesperado momento da morte da personagem de Emma Roberts, fica claro que nossa protagonista será Crystal, brilhantemente interpretada por Betty Gilpin. Levemente caricata, no equilíbrio exato entre não ser séria demais e tornar-se destoante do tom do filme ou surtada demais ao ponto de perder nossa empatia, Crystal é uma pessoa “comum” que, ao que tudo indica, foi arrastada por engano para o meio daquele brutal conflito. Dentro das metáforas de uma dividida sociedade estadunidense traçadas pelo filme, quem Crystal deve representar?

            Há, acredito eu, duas leituras possíveis. A primeira e mais desinteressante, mas que, devo admitir, é a mais provável de ter estado na mente dos roteiristas ao conceber a personagem, é que Crystal representa o “verdadeiro” estadunidense médio, arrastado para um violento conflito entre fanáticos e não sentindo-se pertencente a nenhum dos grupos. Nesse sentido, Crystal estaria apenas tentando sobreviver em meio ao caos de uma nação dividida, e seu vocalizado background militar seria apenas uma forma de justificar sua expertise em estratégias de combate e sobrevivência.

              Quando perguntada pelo consultor militar dos “liberais” se tem um passado militar, Crystal responde ter servido no Afeganistão. E isto me leva à segunda leitura e disparado minha preferida, apesar de improvável: tendo alistado-se voluntariamente para uma das duas guerras que simbolizam a epítome do imperialismo estadunidense pós-Segunda Guerra, Crystal é justamente uma representação do mesmo. Indiferente às projeções caricaturais e lutas por poder travadas entre “deploráveis” e “liberais”, entre republicanos e democratas, Crystal representa as políticas econômicas neoliberais que sufocam a população, as instituições de inteligência (CIA, FBI, ICE, etc.) e forças armadas, órgãos de Estado que continuam a alimentar o complexo industrial militar independente do governo no poder. Crystal é, em suma, a lebre da deturpada história infantil que conta em dado momento do filme: ela pode até sofrer revezes e momentaneamente ser derrotada, mas, no fim das contas, a lebre sempre vence.

Conclusão

        Terminado o trecho de análise mais arriscado do texto, permito-me algumas palavras de conclusão: não acredito que ‘The Hunt’ esteja querendo dizer alguma coisa em específico, trazendo uma “moral da história”. De forma semelhante a Anthony Burgess descrevendo uma sociedade distópica dividida entre uma classe média completamente alienada, uma juventude violenta e um Estado policialesco fascista em “Laranja Mecânica” (1962), ‘The Hunt’ comenta sobre o quase inacreditável absurdo momento político em que vivemos. Em um contexto de verdades absolutas e irrefutáveis produzidas e disseminadas em questão de segundos, em que acredita-se que uma Mamadeira de Piroca era distribuída para crianças brasileiras ou que o partido democrata comandava um esquema de prostituição infantil no porão de uma pizzaria, apenas uma sátira extremamente ácida como a contida em ‘The Hunt’ é capaz de ensaiar compreender minimamente nosso momento político.

          Isto quer dizer necessariamente que ‘The Hunt’ é comparável a “Laranja Mecânica” e “Dr. Fantástico”, ou ao mais recente “Corra!”, em termos de qualidade fílmica e profundidade de análise? Não. Como comentei no texto, a representação de dois lados igualmente violentos e perversos abre espaço para todo tipo de análise “isentona” e alegadamente neutra, e que em nada contribui ao debate político. Entretanto, devo dizer que admiro a coragem do filme de Nick Cuse e Damon Lindelof em construir uma caricatura tão crua de nossa própria realidade política. Coragem esta que quase custou-lhes o próprio lançamento de seu filme, mas que faz de ‘The Hunt’ uma sagaz obra cinematográfica e um importante suscitador de debates e reflexões.