Coringa

Coringa
Data de Estreia no Brasil: 03/10/2019
Direção: Todd Phillips
Distribuição: Warner Bros.

Caras leitoras, caros leitores… se tenho uma certeza quanto a “Coringa”, é que este trata-se de um filme espinhoso de se escrever sobre. Embora eu deva admitir que ainda não digeri por completo a experiência que tive hoje, tenho a certeza de estar falando sobre um grande filme, ainda que imperfeito. Construído como um estudo de personagem sobre Arthur Fleck, um solitário homem de meia-idade que luta contra problemas mentais e trabalha como palhaço para sustentar a si e a sua mãe, “Coringa” vem gerando muita polêmica por tocar em temas sociais sensíveis e controversos, como desigualdade social, doenças mentais e, principalmente, a masculinidade tóxica que cria um ódio contra tudo e contra todos. Eu, no entanto, encaro estas polêmicas como algo positivo, uma vez que, afinal de contas, estamos falando de uma “história de origem” sobre um dos vilões mais polêmicos de todos os tempos. Também acredito que os temas que elenquei acima devem ser pautados e discutidos pelo cinema… só não sei como abordarei-os em uma crítica de apenas cinco parágrafos…

Apesar de derivar alguns elementos de “A Piada Mortal” (1989) de Alan Moore – sem dúvidas a mais clássica história sobre o personagem – “Coringa” acerta ao não se prender a nenhum material base, o que confere a liberdade necessária aos roteiristas Todd Phillips e Scott Silver para explorarem o personagem como bem entenderem. Sendo assim, uma das maiores mudanças que fazem em relação ao clássico de Moore é colocar o Coringa não como um homem “bom” e comum, que teve um mau dia como responsável por “quebrar” algo dentro de si, mas como uma pessoa já problemática, que passou por uma infância traumática e possui um histórico de internamento psiquiátrico. Ajuda também o fato de este não ser o Joker “oficial” do Universo DC (se é que ainda existe alguma preocupação com lógica dentro deste), dando total liberdade a Joaquin Phoenix para experimentar com o personagem.

Felizmente, diga-se de passagem, Phoenix vai na direção exatamente oposta do ridículo Coringa “cafetão” de Jared Leto, buscando apresentar-nos Arthur Fleck como uma alma torturada, que, como ele próprio lamenta, nunca encontrou um dia de paz ou alegria em toda a sua vida. Sempre excepcional no que diz respeito aos aspectos mais corpóreos de sua atuação, Phoenix cria todo um vocabulário de linguagem corporal para o personagem. Para melhor entendermos o brilhantismo de sua atuação, basta comparar este Coringa magérrimo, esguio e curvado com seu protagonista em “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” (2017), um homem que reproduz todo o peso de sua consciência em seus lentos movimentos. Em todos os sentidos, sua abordagem do personagem é brilhante, construindo-o não como alguém que simplesmente “explodiu” após um acontecimento trágico, mas como uma bomba relógio construída ao longo de anos e anos de maus tratos e frustrações. Sabiamente, Phoenix também se recusa a apresentar Fleck como um psicopata no sentido de alguém possuidor um “mal” nato, com uma “natureza” maléfica, mas sim como um indivíduo problemático que foi completamente abandonado a própria sorte por descaso da sociedade e do poder público, representados na forma de cortes de gastos (parece familiar, não é mesmo?).

Quem, inusitadamente, assina a co-autoria do roteiro e a direção de “Coringa” é o cineasta estadunidense Todd Phillips, mais conhecido por sua trilogia “Se Beber Não Case”, entre outros filmes de comédia. Na verdade, ressalto que sua presença no comando da direção é apenas meio que inesperada, pois lembro de ter comentado em minha crítica sobre seu “Cães de Guerra” (2016) o quanto ele havia me surpreendido positivamente com sua condução do filme, uma mistura entre comédia e ação. Aqui, Phillips consegue criar uma estética de puro caos e convulsão social para sua Gotham dos anos 80 (?), o cenário perfeito para uma história de origem do Coringa. O diretor trabalha muito bem também no sentido de ressaltar a performance de Phoenix, enquadrando-o de longe nos momentos em que exibe um Arthur Fleck tortuosamente arrastando-se pelas ruas de Gotham, e utilizando-se de close-ups para dar destaque a seu estado de paranoia e ódio de si próprio. É importante notar também como a direção e o roteiro se utilizam do recurso de possuir um narrador não-confiável para manter-nos com os olhos grudados na tela, sempre tentando adivinhar se o que estamos assistindo é real, ou apenas um pedaço da imaginação de nosso protagonista.

Entretanto, uma reclamação que tenho quanto ao filme é justamente o quanto, por vezes, ele desperdiça este potencial de construir uma exasperada confusão, deixando as coisas “mastigadas” demais para o público em alguns momentos. Acredito também que a ânsia por construir uma história grandiosa demais acabe por deixar a trama do filme um tanto quanto inchada, fazendo a narrativa perder-se em meio a seus muitos personagens e comentários sociais. As revoltas que passam a ocorrer em Gotham com o progredir da trama acabam por deixar a massa populacional da cidade um pouco caricata e animalesca demais. Por enquanto, contudo, decidi guardar estes e outros comentários para o RdMCast que certamente faremos (spoiler, risos), após uma segunda visita ao filme. Basta dizer, por enquanto, que “Coringa” é um ótimo filme, capaz de igualmente entreter e incomodar com suas abordagens e provocações. Ou seja, exatamente o que uma história que se propõe a abordar tal personagem deve fazer.