Calibre
Data de Estreia no Brasil: 29/06/2018
Direção: Matt Palmer
Distribuição: Netflix
Calibre é, antes de mais nada, uma tragédia anunciada. Para além do fato de que o poster e o trailer (que na Netflix irritantemente começa sem você apertar em nada) não escondem que algo brutal vai acontecer nas mãos dos amigos Vaughn e Marcus Já de partida, então, há uma sensação inquietante de que não importa o cenário, aqueles personagens não terão um final feliz. Conseguindo se esquivar de uma possível frustração por sabermos como o filme terminará após assistir o trailer, “Calibre” se utiliza desta sensação de tragédia anunciada causada pelo “spoiler” para sadicamente nos colocar em uma posição de profunda tensão e pesar, enquanto somos apresentados a dois personagens “comuns”, com pretensões e esperanças de futuro que jamais se concretizarão.
Em um primeiro ato que estica na medida esta ironia dramática (quando sabemos algo que os personagens não sabem), conhecemos e vamos nos importando com Marcus, Vaughn e sua noiva, que está grávida, bem como com os habitantes da pequena cidade na região montanhosa da Escócia, onde os dois amigos vão passar um final de semana para caçar em uma floresta. Algumas tensões aqui e ali entre os dois amigos, únicos estrangeiros na cidade, e os habitantes locais, servem para nos lembrar que este não é um filme leve, e para plantar sementes de futuros conflitos que serão espertamente utilizados pelo roteiro para potencializar a paranoia e extremo desconforto dos protagonistas naquele lugar. O diretor e roteirista Matt Palmer utiliza perfeitamente esta enorme tensão que se acumula irritantemente em nossas mentes para potencializar a chocante cena que serve como ponto de virada para sua trama. Aqui, o fato de sabermos que ela virá desde o início não alivia em nada o impacto da brutalidade do que acontece, bem como do profundo desespero de Vaughn e Marcus.
O que “Calibre” consegue fazer (na linha de alguns dos melhores episódios de Black Mirror) é utilizar de nossa simpatia inicial com os personagens, principalmente Vaughn, para nos colocar em uma situação de reféns dentro da trama. Ao mesmo tempo que entendemos a gravidade do que os dois fizeram e questionamos cada uma de suas atitudes posteriores, não conseguimos deixar de torcer para que consigam escapar com impunidade. O dilema moral funciona ainda melhor levando em conta a complexidade dos personagens, que conseguem fugir de meros estereótipos e tornam-se seres humanos completos, falhos e por isso verdadeiros, com quem estabelecemos uma relação empática. Neste sentido, as belas atuações entregues principalmente por Jack Lowden (Vaughn), que consegue criar um personagem carismático, íntegro e mesmo assim corruptível, e Martin McCann, interpretando um Marcus frio, mas sem nunca chegar nem perto de uma psicopatia estereotipada, criam personagens completamente humanos e, portanto, relacionáveis.
Em contraposição aos protagonistas, está uma hábil construção narrativa de uma cidade pacata e de uma população orgulhosa de sua história e resistência, que nos fazem ressentir os protagonistas por enganá-los. Estas complexidades criadas por “Calibre” conseguem elevá-lo acima de apenas mais um filme genérico sobre crime e culpa (ou Crime e Castigo, diriam alguns). Há um visível esmero e cuidado por parte de todos os envolvidos no projeto, desde os componentes do elenco coadjuvante até o diretor Matt Palmer. Aliás, a segurança com que este consegue conduzir uma narrativa complicada e torná-la completamente concisa é surpreendente, considerando que este trata-se de seu primeiro longa-metragem. Destaco principalmente a maneira como contrasta planos estáticos e close-ups em cenas mais “pacatas” com uma movimentação nauseante e planos abertos, mais “secos” e brutais, em cenas de grande peso dramática, tornando-as ainda mais difíceis de assistir em sua frieza implacável. Ainda sobre os aspectos técnicos de “Calibre”, senti falta apenas de uma trilha sonora mais presente e marcante, que poderia manipular nossas emoções de forma ainda mais cínica e se constituir como um elemento mais memorável.
Este, afinal, acaba sendo o único grande defeito de “Calibre”: o número de vezes com que a temática da culpa já foi tratada na literatura (o próprio “Crime e Castigo” é um clássico absoluto) e no cinema (podemos citar “Festim Diabólico” (1948), por exemplo) acaba “soterrando” o longa sob uma camada de inúmeras outras obras que são simplesmente mais geniais. “Calibre”, contudo, consegue se manter bastante acima da média, consistindo em um impressionante filme de estreia para o promissor Matt Palmer e um que merece atingir um público amplo (até pela facilidade de seu acesso). Apesar de que provavelmente não resista ao teste do tempo, garanto que a brutalidade e crueza de “Calibre” permanecerá nos recantos da sua mente por pelo menos algumas horas a mais do que seus meros 101 minutos de duração.