Corra!
(Get Out!)
Comédia/Terror
Data de Estreia no Brasil: 18/05/2017
Direção: Jordan Peele
Distribuição: Universal
Avaliar criticamente uma sátira não é uma tarefa fácil. O espectador/leitor envolvido com a obra pode cometer o erro de levar ao pé da letra cada segmento apresentado, ou mesmo conceber tudo como uma mera alegoria narrativa, suavizando muito a relevância da mensagem que embasa toda a construção da estória. A sátira tem o potencial de exagerar seus acontecimentos ao máximo, construindo sua estrutura a partir de convenções narrativas, mas subvertendo as expectativas do clichê, ao mesmo tempo em que solidifica sua mensagem não só pela argumentação verbal exacerbada ou na essência de sua mensagem, mas pela junção das duas formas: partimos do comum para que o exagero crie o contraste necessário que solidifica os temas abordados.
Com este “Corra!” não é diferente, acompanhamos Chris (Daniel Kaluuya), um rapaz que está indo conhecer os pais da namorada, Rose Armitage (Allison Williams), e se sente receoso por estes serem brancos e não saberem que ele é negro. A partir disso, a narrativa desenvolve uma intensidade crescente em seus acontecimentos e resoluções, nunca recuando para o caminho mais fácil em sua argumentação sobre racismo. Um belo exemplo disso é a construção sutil do roteiro que não aposta meramente em caricaturas de racistas que perseguem o rapaz com arpões e espingardas. O longa pretere por abordar uma forma de racismo naturalizado numa elite branca e de “cabeça aberta”, em que se reafirma de forma corriqueira argumentos genéticos de beleza exótica e potencial de força dos negros, argumentos tão característicos de um Darwinismo Social.
Para o funcionamento certeiro da projeção, Jordan Peele (que é comediante e negro) escreveu e dirigiu a obra de forma perfeita ao balancear bem os tons de comédia e tensão, mostrando que o cineasta conhece bem o conceito de “riso nervoso”. Abrindo a narrativa com um longo plano fluido e de impacto visual, Peele é hábil ao estabelecer sua narrativa aos poucos e com cautela, envolvendo o espectador em curiosidade e mistério. Assim, como diretor ele consegue conter sua ambientação de tensão até o máximo, para que tudo se exploda de forma gratificante para o espectador que se vê engajado emocionalmente numa situação racismo que possui caráter específico, mas que também soa multifacetada no desespero e ansiedade crescente do resto da película. Talvez o único tropeço do roteiro seja mesmo algumas informações verbalizadas de forma expositiva (muitas vezes no clichê de uma pessoa explicando para a outra), mas ainda assim o roteirista não cria cenas ou sequencias somente com este propósito, se aproveitando de momentos oportunos e orgânicos para confirmar seus planos quanto a estória.
Ainda no roteiro, é extremamente gratificante perceber como a suspensão de descrença que o filme exige da platéia funciona justamente por não utilizar de uma enxurrada de elementos implausíveis de uma só vez, mas estabelecendo gradualmente a estranheza daquela situação. Não se poder negar que é justamente essa construção compassada que solidifica o exagero do filme, que por sua vez nunca dilui sua crítica social necessária. Da mesma forma, é interessante constatar como nada em “Corra!” é jogado como uma mera ferramenta narrativa a ser descartada mais a frente, já que o longa toma o cuidado de apresentar regras, objetos e personagens e depois reutilizá-los de forma natural, sem apelar para forças externas que ainda não haviam sido apresentados para o público, sabendo amarrar suas pontas soltas por meio de diálogos, rimas visuais e/ou temáticas – e gosto particularmente do fato da sequencia final se relacionar em tom e ações tão bem com o início do filme, provando um cuidado no acabamento da estória.
Como diretor, Peele se sai muito bem ao utilizar de forma rápida e banal clichês visuais e sonoros do terror, como ao colocar pessoas passando ao fundo do quadro enquanto um acorde alto salientando o tom “jump scare”, ou mesmo escolhendo muito bem seus enquadramentos, utilizando muitas vezes de planos médios que não só revelam a expressão do personagem, mas também deixa espaços vazios ao fundo que criam uma sensação de que a qualquer momento algo pode surgir na tela e nos assustar. Ainda, o diretor parte para “close ups” em momentos-chave para criar uma ambientação claustrofóbica mais do que propícia. Peele acaba por se beneficiar também de uma mixagem de som certeira que sabe como utilizar bem de sons crescentes ao fundo que colaboram para a tensão crescente das cenas, seja pelo ruído incessante de uma colher raspando no fundo de uma xícara, tábuas que rangem lentamente num momento de confronto verbal ou mesmo por uma sequencia silenciosa de uma partida de “bingo”.
Para completar, todos estes ótimos elementos são plenamente solidificados por um elenco escolhido a dedo para seus papéis. Se Allison Williams surpreende pelo controle emocional de cada expressão de sua personagem, Kaluuya faz um trabalho sutil ao construir um personagem que ama sua namorada, se sente incomodado com certas situações e ainda possui seus próprios segredos – e o fato de o ator ser britânico e não escorregar em seu sotaque uma única vez me faz perdoar completamente o vício deste em sorrir desconfiado e olhar pro lado. Quem acaba roubando a cena mesmo é LilRel Howery como Rod (amigo de Chris), que com seu timing cômico perfeito é capaz de exalar carisma em cada cena que aparece. E embora os segmentos envolvendo Rod destoem um pouco do resto da narrativa (talvez até propositalmente por parte da produção), não se pode negar que estes por si só já funcionam muito bem em seu humor.
Fechando ainda o elenco temos Catherine Keener e Bradley Whitford como os pais de Rose, o Sr. e a Sra. Amirtage, que se mostram figuras intimidantes e convidativas ao mesmo tempo, fazendo com que o filme ganhe muito com personagens passivo-agressivos e profundamente dúbios. Este elemento se torna importante quando vemos a necessidade do longa em criar também um certo clima de paranóia, fazendo com que duvidemos a todo instante da veracidade de alguns acontecimentos que testemunhamos, ou que desconfiemos que embora seja um clima de completa estranheza, talvez não passe disso: pessoa estranhas num ambiente de socialização em que o bizarro impere. O personagem de Whitford é um bom exemplo disso, já que embora pareça centrado e polido por vezes, seus diálogos constantemente se tornam “atípicos” (pra dizer o mínimo), sendo mesmo interessante perceber como o último grande longa do ator foi outra excelente sátira do terror: “O Segredo da Cabana”.
Aliás, devo apontar que “Corra!” é sem sombra de dúvidas a melhor sátira do gênero desde o longa de 2012, sendo com toda certeza a mais relevante deste século, ao menos no circuito main stream. O que vai ser realmente um incomodo para aqueles que já recheiam as páginas da internet com comentários de que este filme é feito para uma “esquerda vitimista”, o que denota uma imbecilidade e obtusidade por parte destes indivíduos que não conseguem compreender nada quanto a empatia, humanidade, questões sociais relevantes embasadas em argumentos de verdade, além de aspectos narrativos cinematográficos de construção de sátira. Temas os quais “Corra!” não só domina como também dá uma verdadeira aula.