Crítica | Crimes do Futuro

Crimes do Futuro
(Crimes Of The Future)
Data de Lançamento no Brasil: 14/07/2022
Direção: David Cronenberg
Distribuição: MUBI & O2 Play

O cinema, em todas as suas formas, já serviu de palco para as mais diversas discussões sociopolíticas, nos provocando profundos questionamentos sobre o mundo em que vivemos, e o futuro que ainda estamos por conhecer. Da ficção científica ao terror psicológico, fomos presenteados com inúmeras obras audiovisuais que se dedicaram a colocar em cheque o nosso verdadeiro conhecimento sobre os instintos humanos, nossos desejos mais obscuros e nossa constante busca por sentir e experienciar emoções da maneira mais intensa possível. A trama de Crimes do Futuro, novo filme do mestre David Cronenberg após um hiato de 8 anos, abre espaço para as mais variadas reflexões, e, mesmo com problemas narrativos que comprometem  diretamente nossa identificação com a história principal, ainda nos rende ótimas cenas que navegam entre o sombrio, o asqueroso e o fascinante.

Num futuro distópico no qual a dor física, as doenças e as infecções foram erradicadas, a espécie humana enfrenta mutações e adaptações frente ao ambiente sintético do qual se vê rodeada, e pode estar diante de um iminente e significativo próximo passo evolutivo. Nesse meio, conhecemos o renomado artista performático Saul Tenser (Viggo Mortensen) e sua parceira Caprice (Léa Seydoux), que juntos expõem, em apresentações artísticas abertas ao público, a remoção, através de cirurgias mecanizadas, de novos órgãos desenvolvidos pelo corpo de Saul, tatuados por Caprice.

Após ser abordado pelo misterioso Lang (Scott Speedman), Saul recebe o convite e a permissão para realizar uma autópsia em uma de suas apresentações, autópsia essa que pode revelar segredos e surpresas, e mudar a forma como todos enxergam o mundo. Enquanto isso, Timlin (Kristen Stewart), uma investigadora do registro de órgãos (organização ainda ilegal) se torna obcecada pelo trabalho e pela arte de Saul, acompanhando seus passos cuidadosamente, ao mesmo tempo que um grupo secreto parece estar desenvolvendo um novo produto que promete ser o alimento do futuro.

Diante da pluralidade de arcos, temas e camadas, é triste ver uma premissa tão promissora e instigante não aproveitar o potencial narrativo de sua história principal e de seus personagens secundários. Crimes do Futuro acaba desperdiçando suas forças em subtramas mal apresentadas e mal resolvidas, que acabam mais embaraçando a história principal do que a complementando. Pela busca incessante dos detalhes visuais para chocar, impactar e transmitir sensações fortes ao público (essas muito bem realizadas), Cronenberg peca na ausência dos detalhes narrativos que fariam toda a diferença na lapidação de sua história. Apostando ou não na capacidade de seu público para montar seu próprio quebra-cabeças, o filme omite alguns esclarecimentos necessários, encontrando também dificuldades para manter o ritmo cativante de seu primeiro ato.

Apesar das atuações competentes, principalmente de Mortensen, Seydoux e até de Stewart, que, mesmo com uma personagem mal aproveitada, entrega uma performance natural e forte o suficiente para tornar-se marcante, o longa se vê diante de um tempo de tela realmente curto (107 minutos) para trabalhar satisfatoriamente todas as temáticas introduzidas pelo roteiro, deixando um bom vazio durante o desenvolvimento e a conclusão da obra. O potencial de surpresa da reviravolta que nos leva ao terceiro ato é também muito afetado pela instável condução dos elementos que movem a trama ao longo do segundo ato, deixando seu público com sentimentos mistos, tentando criar conexões sem todas as ferramentas para tal.

Ainda assim, Crimes do Futuro tem seu mérito, e não dos pequenos. Desde seu belíssimo e bem introduzido body horror até a maneira sutil e ao mesmo tempo explícita com que questiona muitos de nossos impulsos sociais, o longa nos conquista pela ousadia com a qual tece sua teia de argumentos e nos transporta completamente para um novo e inexplorado universo. Este é construído a partir  de uma visão de futuro pessimista e alarmante, com aspectos técnicos primorosos que refletem o estado de espírito dos personagens, emanando desesperança e tragicidade. Destaca-se aqui o sóbrio e ao mesmo tempo agonizante design de produção, que trabalha acima de tudo o desconforto gerado pelas cores escuras e sem vida, e também a hipnotizante e extremamente imersiva trilha musical composta por Howard Shore.

Seríamos capazes de encarar o mundo através de uma visão assumidamente hedonista? Nossas atitudes para com o meio ambiente estão realmente nos deixando próximos a um desastre sociopolítico-econômico? É possível que nossas deformidades internas ou externas estejam anunciando um novo processo natural da evolução humana? Acredite, as questões não param por aqui.  A esfera distópica e todo o contexto apresentado no filme rendem reflexões sociais interessantes sobre o atual momento em que vivemos e nossa prospecção para o futuro.

Cronenberg planta pequenos (mas diversos) comentários e discussões acerca de sua obra, que vão da nebulosa definição de arte/artista e da noção de alimentação sustentável, até os limites do corpo e da mente em relação às nossas necessidades pessoais cada vez mais exigentes e complexas. Independente das dificuldades do roteiro em se mostrar convidativo e bem amarrado na maior parte do tempo, seria simplesmente lamentável não se deixar levar pelas incontáveis propostas reflexivas de um projeto tão audacioso como este, o que o faz ser imperdível para qualquer fã do diretor, do subgênero do horror corporal, ou mesmo do bom cinema sensorial que valoriza o poder de suas imagens.

É um filme divisivo, feito para incomodar e nos fazer pensar sobre a vida que levamos e a vida que gostaríamos que nossos jovens tenham daqui a algumas décadas. O horror aqui se faz presente na frieza e nas relações entre os seres humanos, nas atrocidades que os mesmos são capazes de cometer para revelar ou acobertar algo. A maneira como Cronenberg gera sentimentos conflitantes em seu público ao expor cenas aflitivas (para nosso mundo) e simultaneamente reconfortantes e prazerosas (para o mundo ficcional do qual estamos diante), é simplesmente fantástica. Pouquíssimos cineastas conseguem alcançar façanhas semelhantes com tanta facilidade e autenticidade, e é exatamente por conta dessas cenas e sequências, ao lado de todos os questionamentos propostos pelo roteiro, que Crimes Of The Future, com todas suas imperfeições narrativas, definitivamente ficará na memória do público por um bom tempo.