Crítica | Pobres Criaturas

Poor Things

Direção: Yorgos Lanthimos

Ano: 2023

País: Estados Unidos

Distribuição: Walt Disney Pictures

Nota do crítico:

Não é segredo para ninguém que ouve o RdMCast que Pobres Criaturas era um dos meus filmes mais aguardados para 2023/2024. Grande fã do surrealismo do pirado diretor grego desde Dente Canino (2009), eu me apaixonei de imediato por A Favorita (2018), primeira parceria entre Yorgos Lanthimos e a excelente atriz Emma Stone. Seria impossível, então, não criar enormes expectativas para um filme protagonizado por Stone que envolve o estilo de Lanthimos e uma premissa com clara inspiração em Frankenstein.

Assim como já havia acontecido no filme de 2018, Lanthimos e seu parceiro de escrita habitual, Efthimis Filippou, deixaram o roteiro nas mãos de Tony McNamara, que aqui adapta o romance Poor Things (Alasdair Gray, 1992). No enredo, uma desconhecida jovem britânica comete suicídio e é trazida de volta à vida pelo cientista e inventor Godwin Baxter. Possuindo o cérebro de uma criança no corpo de uma mulher adulta, Bella Baxter experencia a vida em todos os seus elementos mais banais como uma deliciosa nova descoberta, e assim parte em uma aventura pela Europa.

Sinto-me na obrigação de mencionar como primeiro elemento de destaque nesta crítica do filme seu design de produção e figurinos, que são deslumbrantes. Enquanto os filmes anteriores de Yorgos Lanthimos pareciam se passar em uma versão levemente mais deturpada e maluca de nossa própria realidade, Pobres Criaturas se situa no que só pode ser descrito como um universo alternativo.

Claro, há aqui muitos elementos da Londres vitoriana das clássicas histórias sobre “homens brincando de Deus”, mas todo o resto é muito mais exagerado e colorido, o que absolutamente funciona em favor do filme. O clássico arquétipo do cientista criador, por exemplo, (brilhantemente interpretado por Willem Dafoe) é literalmente chamado de Deus pelos demais personagens (diminutivo de Godwin), e é em si próprio uma mistura do dr. Frankenstein com seu monstro, uma vez que sofreu com os experimentos cruéis de seu pai quando ainda criança.

A relação entre God e Bella dá o tom do restante da narrativa, que não cria desculpas ao explorar alguns dos temas mais incômodos da vivência humana. Não há qualquer complexo de culpa em Godwin por reanimar Bella, mas sim uma relação antagônica que naturalmente se desenvolve por parte da jovem criatura que quer expandir seus horizontes frente ao paternal cientista que quer observá-la dentro de condições controladas.

Nesse sentido, há um grande acerto por parte do roteiro de Pobres Criaturas ao não tentar criar um arco muito estruturado para a jornada de Bella, mas permitir que o próprio prazer das descobertas seja o motor da trama. Logo ela parte então em uma espécie de Eurotrip deturpada com o deliciosamente canastrão Duncan Wedderburn de Mark Ruffalo, deixando de lado o “bonzinho” assistente de Godwin, Max McCandles.

Como mencionado anteriormente, há uma simplicidade inteligente e intrincada na construção dos cenários pelos quais Bella viaja, que, aliás, lembra bastante a inventividade de Barbie (2023). A primeira parada, Lisboa, por exemplo, é uma linda cidade em tons de aquarela que representa perfeitamente o encantamento de Bella com a descoberta dos prazeres carnais…… e do pastelzinho de Belém.

Ao todo, o senso estético do filme, especialmente na sessão do Barco, evoca muito o estilo de Wes Anderson, mas com um forte teor sexual que se impõe em cada cena. E é aqui que a escolha de Yorgos Lanthimos para a direção se prova excepcionalmente acertada. Seus ângulos de câmera pouco convencionais e a sensação de aguçada curiosidade que consegue transmitir em cada cena se encaixam com perfeição à jornada de Bella, mesmo em seus momentos mais pesados, em Alexandria e Paris.

Seria uma enorme injustiça, contudo, passar mais uma linha sequer desta crítica sem mencionar a estupenda interpretação de Emma Stone, um dos principais pontos de sustentação do filme. Aqui ela vai um passo além do que já havia demonstrado em A Favorita, com uma enorme entrega ao papel. Por meio de expressões faciais, inflexões de voz e uma linguagem corporal muito precisa, ela é capaz de realmente nos convencer que de fato vive todas aquelas descobertas pela primeira vez. Seus olhos extremamente expressivos são capazes de transmitir, como ninguém mais seria, a forte torrente de emoções que atravessa sua personagem central.

Se é que há algum ponto negativo a apontar sobre Pobres Criaturas, talvez ele esteja em sua duração. Os 141 minutos de filme não chegam a ser um problema em si mesmo, mas sim a sensação de que algum segmento ou sequência poderia ter sido enxuto para chegar a um resultado final ligeiramente mais ágil e coeso. Isso porque a estrutura claramente episódica da trama chega a cansar um pouco em seu alongado 2º ato, antes da esperada conclusão. Devo confessar, no entanto, que o clímax do filme chegou a me surpreender, com uma brusca mudança de rumo que foi enormemente benéfica à trama. 

Por fim, é possível dizer que, assim como já havia feito em Dente Canino (2009), Yorgos Lanthimos demonstra toda a sua enorme capacidade como cineasta ao conduzir um filme que soa como um experimento, nesse caso partindo do clássico arquétipo de criador/criatura para entender como uma mulher-bebê conheceria o mundo, em todo o seu esplendor e tragédia. E, nisso, Pobres Criaturas certamente não decepciona.