Fragmentado

Fragmentado
(Split)
Data de Estreia no Brasil: 23/03/2017
Distribuição: Universal Pictures
Direção: M. Night Shyamalan

Night Shyamalan está de volta… Bem, mais ou menos isso. A verdade é que este novo filme, “Fragmentado”, traz muito dos elementos mais eficientes da filmografia inicial do diretor, ao mesmo tempo em que demonstra alguns problemas característicos dos últimos péssimos filmes deste. Assim, perdoe-me o leitor, mas esta não será uma crítica tradicional, já que sinto a necessidade de discutir diversos temas dentro do longa que seriam spoilers para quem ainda não o viu, ao mesmo tempo em que me sinto na necessidade de escrever também para o leitor que procura uma visão mais superficial em trama, mas aprofundada nos outros aspectos do filme.

Como pode-se até dizer que parte de mim amou o filme e outra se sentiu frustrada em certos aspectos, acho que é hora de chamar essas minhas duas personalidades para discutir a crítica em duas partes: a primeira com os aspectos mais gerais do filme e uma segunda bem mais específica com spoilers… Isso mesmo, uma crítica “fragmentada”…

Personalidade 1: “É um filme 3 estrelas”

A história começa com uma premissa clássica de suspense: um seqüestro. Quem está por trás disso é Kevin (James McAvoy)… Na verdade, uma de suas 23 personalidades, já que ele sofre de TDI. Levadas e enclausuradas em algum local desconhecido, a aniversariante Claire (Haley Lu Richardson), Marcia (Jessica Sula) e Casey (Anya Taylor-Joy) buscam uma forma de escapar, enquanto é esta ultima quem se destaca como uma líder, que se mostra também isolada do restante do grupo por ser considerada “estranha”. A partir dessa premissa claustrofóbica o filme aposta de vez num tom de Thriller que por vezes é eficiente, mas por outras perde a mão nas ferramentas que se utiliza para contar a estória.

Talvez o melhor exemplo desta funcionalidade variante seja a cena de seqüestro que se passa dentro de um carro. Embora construída com claros fins de gerar tensão – e consegue justamente pela construção da cena que atrasa a revelar a presença de Kevin no carro -, mas que acaba incomodando com pausas dramáticas entre as atitudes e falas dos personagens que o diretor utiliza para criar uma tensão a mais naquele segmento, mas que soam meio que desajeitadas (talvez por uma montagem pouco acelerada da sequencia). Essa aposta de tom etéreo e de ritmo lento é um clássico na filmografia do diretor, fazendo com que qualquer um que conheça um pouco mais da filmografia deste consiga identificar seus vícios (como fazer seus atores dizerem suas falas de forma baixa e pausada), ainda que neste filme estes possuam sua funcionalidade.

E se funcionam é graças a uma construção mais complexa dos personagens, que em sua maioria é sustentada por atuações interessantes – o tropeço aqui recai justamente nas outras duas garotas seqüestradas na estória, que representam um ponto fraco comparado aos demais atores. Enquanto Taylor-Joy entrega um desempenho mais do que satisfatória ao realçar um pragmatismo trágico por parte de Casey, é mesmo James Mcvoy quem se destaca nessa categoria por criar diversas personalidades distintas que corroboram com êxito para que o espectador se sinta envolvido com o filme. Sim, aqui e ali, o ator é obrigado a desenvolver “tiques” ou maneirismos que denotem os variados indivíduos que habitam o corpo de Kevin, mas estes jamais se transformam em meras distrações (ainda que a língua presa do pequeno “Hedwig” chega perto), depondo a favor da construção “dos personagens”.

Assim, a primeira hora de filme de se desenvolve com sérios problemas de ritmo que são realçados pela estruturação do roteiro que recheia esta metade com informações expositivas através de diálogos e a incisão de flashbacks que (por mais relevantes que acabem se mostrando ao final da projeção) desaceleram ainda mais a narrativa, fazendo com que o espectador canse de todo um segmento que o filme trata como importante – e assim, falta um pouco de concisão à narrativa, que poderia facilmente ter uns 15 minutos a menos já que diversas passagens da estória soam prolixas.

Ainda assim, quando vamos para a segunda metade o filme desenrola sua estória de uma maneira muito mais dinâmica, cabendo a Shyamalan mostrar sua habilidade de criar planos e rimas visuais que se mantêm inteligentes (como o movimento de câmera que acompanha a tubulação de um lugar e depois o teto de um meio de transporte, fazendo um paralelo interessante entre dois ambientes distintos). Além disso, o diretor faz um bom uso de uma câmera subjetiva que não soa óbvia, funcionando bem na cena inicial de seqüestro como também num ponto chave no qual um posicionamento de câmera completamente objetivo (ou seja, que não parte do ponto de vista de uma personagem específica) expõe uma imagem desfocada que sinaliza um estado de lucidez subjetivo de um determinado personagem.

Ainda, Shyamalan é inteligente em suscitar um ambiente claustrofóbico a partir de elementos simples, como o fato de raramente posicionar sua câmera do lado de fora de aposentos, enfocar uma luz do dia invadindo um somente em um momento específico da trama, além de saber utilizar de planos com profundidade de campo reduzidíssimos enquanto aposta em muitos close-ups. Este pode até não ser um filme perfeito do cineasta que um dia foi chamado de “O Novo Spielberg”, ou que recebeu indicações ao oscar, mas é uma experiência satisfatória que, com uma certa suspensão de descrença, é capaz de ser engajante.

O que acaba nos levando ao grande problema do filme, que acaba apostando muitas das suas fichas de resolução em sua revelação final (de última cena mesmo), que depende demais de um certo conhecimento prévio por parte do espectador (e isto se mostrou mais do que claro ao final da projeção quando um colega me questionou quanto a natureza daquela cena final). Seja como for, ao menos este trabalho denota uma retomada de um Shyamalan de mais de 15 anos atrás, que comandava obras de forte teor de entretenimento enquanto sabia como comandar também o nosso emocional… Não estou dizendo que este filme seja tão bom quanto um “Corpo Fechado”, por exemplo, mas já é um bom recomeço.

Personalidade 2: “É um filme 5 estrelas”

 

AVISO: CONTÉM MUITOS SPOILERS!

 

Como meu colega apontou na crítica anterior, “Fragmentado” traz elementos característicos de Shyamalan, tanto pro bem quanto para o mal. Talvez o melhor destes seja a revelação final do filme que nos mostra que “Split” se passa no mesmo universo que “Corpo Fechado”. Ou seja, enquanto naquele filme de 2000 acompanhávamos uma história de origem de um herói, neste novo longa somos apresentados a outra história de origem: a de um “vilão”.

Partindo deste conceito, Shyamalan brinca novamente com os arquétipos de HQs ao nos apresentar um antagonista à altura de David Dunn, personagem de Bruce Willis em Unbreakable. Podemos notar como os próprios nomes dos filmes em inglês, Unbreakable (“inquebrável”, numa tradução livre) e Split, se mostram já antagônicos e complementares – algo que o próprio personagem de Samuel L. Jackson afirmava em um monólogo em determinado momento daquele longa. Aliás, este personagem é outro ponto chave para compreender os paralelos traçados entre os dois filmes, pelo fato da origem dos dois personagens estarem ligadas a um trem, fazendo com que eu acredite numa possibilidade implícita: a de que o pai de Kevin deve ter morrido no mesmo acidente de trem que fez com que David Dunn se mostrasse como “inquebrável”.

Este elemento é extremamente importante para que reparemos que Shyamalan subverteu os personagens deste universo de história de super-heróis ao fazer com que “A Horda” seja também uma criação do Mr. Glass, fechando uma alegoria entre um herói com super força, um arquiinimigo super inteligente e um “vilão” de essência bestial criado por este, com sua força física advinda de uma condição mental– e se você consegue suspender seu ceticismo para acreditar num filme que uma fase evolutiva do ser humano é capaz de ler mentes ou controlar o metal, deveria ser fácil também aceitar que “a mente é capaz de mudar a química do corpo”.

E se coloco o termo “vilão” entre aspas, isto se deve ao fato de que, assim como Magneto na franquia X-men, a fera que tomou a personalidade de Kevin se desenvolve a partir de crenças evolucionistas de que os humanos são seres ultrapassados que subjugam pessoas consideradas “diferentes”, fazendo com que este defenda a existência de uma nova raça dominante que, agora, subjugue os humanos considerados “impuros”. Além disso, é mais do que claro o caráter trágico da “mutação” de Kevin, transformando-o numa espécie de “incrível Hulk” em sua divisão clara no caráter violento de cada grupo de personalidades.

Nessa perspectiva, a fraqueza da “Horda” é mais do que coerente com a proposta de desenvolvimento do personagem, já que quando o lado sobre-humano impera, as personalidade de Kevin se unem em omissão, mas quando todas estas emergem de uma vez (a partir do nome completo de Kevin), a confusão mental é um toque final interessante para a construção do personagem já que enfraquece o corpo por uma condição psicológica.

Assim, a sequencia inicial do carro acaba funcionando em sua dramaticidade excessiva quando pensamos no filme depois (embora falha como experiência instantânea), já que encaixa na perspectiva de “A Horda” escolher duas garotas humanas impuras sem notar a presença de Casey Cooke, que depois será considerada como uma pessoa “digna” e “de coração puro”, devido a suas cicatrizes ao longo do corpo. Aliás, devo pontuar aqui que por mais genérica que seja a visão do filme quanto a trauma como desenvolvimento de questões psiquiátricas , ao menos ela se mostra coerente com a abordagem da narrativa (conduzindo a um arco dramático para a protagonista).

Ainda, a direção de Shyamalan contribui imensamente para a conexão entre os dois longas do cineasta, com uma resolução final de Kevin em frente a dois espelhos que remete diretamente a sequencia de abertura do longa de 2000, além da já citada sequencia no carro na qual o diretor faz o mesmo movimento lateral de câmera que executava na sequencia inicial do trem na película anterior. Todos estes pontos corroboram para a já confirmada sequencia “Corpo-Fechado 2”, que poderá se concentrar numa história clássica de super heróis que mistura o mais fantástico das HQs com a mais humana das estórias.