Crítica | O Beco do Pesadelo

O Beco do Pesadelo
(Nightmare Alley)
Data de Lançamento no Brasil: 27/01/2022
Direção: Guillermo del Toro
Distribuição: Searchlight Pictures

Como já dizia o sábio escritor Oscar Wilde (1854-1900), somos nosso próprio demônio, e fazemos deste mundo nosso próprio inferno. Quando paramos para pensar na filmografia de Guillermo del Toro, responsável pelo excelente e premiadíssimo A Forma Da Água (2018), identificamos que um tema recorrente, e provavelmente principal, de suas obras é o horror das atitudes humanas. Ardilosamente, o diretor e roteirista utiliza deste ponto de partida para desenvolver argumentos convincentes sobre nossas falhas individuais, coletivas e sobre a crueldade do mundo que nos cerca. Desta vez abandonando quase que completamente o sobrenatural e o universo fantasioso que o concebeu, Del Toro nos presenteia com uma história perspicaz sobre um desconhecido em busca de uma vida digna,  de reconhecimento e, acima de tudo, redenção. 

Baseado no livro “Nightmare Alley” (título original do longa), escrito pelo romancista William Lindsay Gresham, O Beco do Pesadelo se passa no início dos anos 40 e centra-se na jornada de autodescobrimento de Stanton Carlisle (Bradley Cooper), um misterioso e charmoso rapaz com um passado obscuro que tenta ganhar a vida após chegar em uma feira itinerante. Os participantes da feira, habilidosos artistas que performam números de ilusão com suas artimanhas, logo acolhem Stan em sua comunidade. Agora, com um emprego em mãos e apadrinhado pela vidente Zeena (Toni Collette) e seu beberrão marido Pete (David Strathairn), um mentalista de primeira, Stanton começa a aprender alguns truques para controlar a mente do público. Após iniciar um romance com a bela jovem Molly (Rooney Mara), uma virtuosa participante da feira, ele percebe a oportunidade de deixar a feira e tentar a sorte grande, ludibriando a elite nova-iorquina. Porém, tudo se complica quando Stan decide tentar dar um golpe em Ezra (Richard Jenkins), um instável e perigoso magnata da cidade. Para isso, ele terá que contar com a ajuda de Lilith (Cate Blanchett), uma enigmática psiquiatra que pode sinalizar o fim de seus dias dourados.

Definindo-se como um thriller psicológico/dramático com elementos neo-noir, o filme constrói seu protagonista de forma audaciosa. Inicialmente, com seus poucos diálogos e sua personalidade impenetrável, Stanton conquista de vez a atenção do espectador. Conforme a narrativa avança, vamos nos identificando com as ações e intenções do personagem e, por bem ou mal, inevitavelmente torcemos para que o mesmo consiga cumprir com seus objetivos, o que nos faz sentir parte da história, personagens daquele recorte. Porém, conforme o terceiro e derradeiro ato se aproxima, o roteiro intencionalmente nos faz perceber a tamanha enrascada que Stan se enfiou, principalmente por conta de sua própria extrema pretensão e incapacidade de evitar seus instintos. Incrivelmente, essa percepção pode sim fazer com que muitos não concordem com o comportamento do protagonista frente a algumas situações, mas definitivamente não nos faz perder o interesse pelo desfecho da história. Nos minutos finais, passamos a acompanhá-la quase que como meros espectadores de uma tragédia, já distantes do protagonista, mas atentos e curiosos.

Guillermo del Toro resgata o melhor dos elementos visuais e temáticos que as célebres produções de film noir nos trouxeram na Era de Ouro de Hollywood, período pelo qual o diretor é assumidamente apaixonado. Enquanto a montagem dita o ritmo perfeito para que acompanhemos a trajetória do protagonista e dos demais personagens, trabalhando inclusive efeitos de transição que remetem diretamente aos filmes da época, a ótima direção costura de forma competente a história que possui, sem apelar para estilizações desnecessárias, mas também sem perder seu charme. Não há palavras para definir o refinamento do design de produção, que impressiona desde a construção dos cenários até a maquiagem e o figurino, mas quem rouba a cena em diversos momentos é a melancólica e minuciosa trilha musical, composta pelo ótimo Nathan Johnson.

Para muito além de uma simples femme fatale, casos extraconjugais e um protagonista astuto tentando enganar outros para se beneficiar, O Beco do Pesadelo chega em um momento ideal, nos convidando a refletir sobre os males de uma sociedade desigual e conservadora, regada a uma precária distribuição de renda e péssimas oportunidades de emprego. O filme nos faz questionar sobre poder, ganância e ingenuidade, além de  como esses fatores, se aliados, são capazes de nos cegar a ponto de cometermos crimes inimagináveis com razões que, espantosamente, acreditamos ser boas o suficiente para justificá-los. Querendo ou não, é possível afirmar que ainda vivemos num mundo ditado pelos ricos, influentes e trapaceiros, e o mais triste é não termos nem ideia de se um dia sequer deixaremos de viver nessas circunstâncias.

Sair indiferente de uma sessão de cinema após assistir ao novo filme de del Toro é simplesmente impensável. Como de praxe nos filmes do diretor, a obra revela-se tematicamente necessária e tecnicamente sublime, com direito a alguns (leia-se vários) enquadramentos realmente inspirados. O Beco do Pesadelo, indicado em mais de 8 categorias no Critics Choice Awards, incluindo melhor filme e melhor diretor, alcança façanhas memoráveis e se mostra uma obra ideal para ser conferida nas telonas.