Crítica | O Que Ficou Para Trás

O Novembro Preto começou – mês em que é comemorado o Dia da Consciência Negra – e nada melhor do que um ótimo filme de terror para começar o mês. “O Que Ficou Para Trás” (His House) estreou no dia 30 de outubro na Netflix e está gerando certo burburinho, sendo considerado um dos melhores originais do ano da plataforma.

No filme, acompanhamos o casal de refugiados Bol (Sope Dirisu, Humans) e Rial (Wunmi Mosaku, Lovecraft Country) que após serem presos pela imigração ao fugir da guerra no Sudão, seu país de origem – perdendo sua filha, Nyagak (Malaika Wakoli-Abigaba) no trajeto –, recebem uma chance do governo do Reino Unido de se tornarem cidadãos ingleses. O casal ganha uma residência num conjunto habitacional e precisam seguir rígidas regras para ganhar a cidadania, até que acontecimentos sobrenaturais começam a ocorrer.

O filme, que deu um prêmio ao seu diretor no festival de Sundance, Remi Weekes – que após dois curtas tem em ”His House” seu primeiro longa-metragem – é uma imersão significativa no roteiro audiovisual. O grupo de roteiristas – igualmente iniciantes – formado por Rami, Felicity Evans e Toby Venables viaja por várias formas de se contar uma história de terror com fantasmas, brincando com a linha temporal e surpreendendo até com a mais batida das convenções do gênero: os jump scares.

A história de “His House” ganha sensibilidade ímpar ao carregar o simbolismo do peso da vivência de um casal de imigrantes negros em uma sociedade branca, sendo marginalizados por tudo o que representam: seu país, sua cor, sua religião, sua imagem. O processo de “embranquecimento” que Bol atravessa  durante o filme vai além do trauma que ele carrega diante de seus experiências seu país natal, mas também são consequências do terror psicológico que é tentar se adequar a uma sociedade na qual  ele não consegue se enxergar de forma alguma – tanto que todos os seus modelos para comprar roupas são brancos.

O filme, que tem uma hora e meia, não gasta muito tempo para apresentar o simbolismo sobrenatural em tela, chegando a surpreender é por introduzir tão cedo os personagens dentro daquele ambiente. Entretanto, existe a justificativa de que eles estão culturalmente preparados para aquele mal, coisa que não estaríamos, sendo representantes de outro tipo de cultura. A bagagem cultural que eles possuem os educou – de certa forma – para enfrentar aquilo.

Isso é muito interessante de se observar. Enquanto membros de uma sociedade majoritariamente cristã, nos é comum ver em tela a representação do demônio, do anticristo e de tudo o que deriva da bíblia. No filme, a lenda da cultura africana os educa contra o mal enfrentado. Mal este que pode ser considerado a representação do luto, da guerra, do estresse pós-traumático de escapar de um ambiente onde a morte era algo corriqueiro. A “culpa do sobrevivente” que eleva-se à décima potência.

Como disse, a edição do filme brinca com as convenções, se torna confusa e complexa, mas de um jeito bom. É imersiva e te deixa intrigado. Te deixa assustado e questionando o que é real e o que não é. A elevada tensão à qual os personagem são postos é revezada entre o sobrenatural e o real: os fantasmas que os perseguem e os funcionários da imigração, em grande parte representados pelo personagem de Matt Smith (Doctor Who), que a qualquer momento pode decidir mandá-los de volta ao local do qual eles tentaram fugir.

A maquiagem e a ambientação são perfeitas. A casa dos protagonistas é suja e inadequada o suficiente para dar a sensação de que eles não são realmente bem-vindos ali, e os fantasmas/alucinações são surreais no ponto exato para brincar com a noção de sonho ou realidade que as cenas possuem. Todas as sequências são extremamente tensas e bem filmadas, arrancando o melhor dos atores, em especial de Sope, que, sinceramente, merecia alguma lembrança nas próximas premiações.

“O Que Ficou Para Trás” chegou sem alarde e se tornou uma das melhores produções da Netflix. O filme acerta como horror psicológico, como horror de fantasmas, como um conto de dia das bruxas, como uma crítica ao colonialismo. Enfim, é definitivamente um dos melhores filmes do ano.