“Nós”

Nós
(Us)
Data de estreia no Brasil: 21/01/2019
Direção: Jordan Peele
Distribuição: Universal Pictures

Faz pouco mais de dois dias que assisti a “Nós” (Us) e ainda não sei exatamente explicar o que a experiência representou pra mim. Apresentando alegorias fascinantes, sequências enervantes e assustadoras e um senso de humor voltado para o desenvolvimento de personagens e situações, o novo longa de Jodan Peele (“Corra!”) apresenta tantas nuances e camadas que é difícil analisa-lo apenas com uma primeira conferida. Não sendo um roteiro tão amarradinho e certeiro quanto o seu antecessor (um comparativo desnecessário, mas inevitável em certos pontos), “Nós” prova que Peele não teve apenas um golpe de sorte com seu longa anterior, e é sim um dos maiores talentos revelados nos últimos anos.

Voltando-se completamente para o gênero de horror desta vez (“Get Out!” era antes “sátira” do que qualquer outra coisa), o diretor/roteirista/produtor nos apresenta a Adelaide Wilson (Lupita Nyong’o) e a sua família, que estão passando as férias no ensolarado litoral da Califórnia. Certa noite, ao voltarem da praia, Adelaide, seu marido Gabe (Winston Duke) e seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex), são encurralados por uma família que parece ser uma cópia deles mesmo. Ou seja, esta é uma história de terror cheia de paralelos e bizarrices envolvendo duplicidades.

Explicar o “plot” de “Nós” é uma tarefa ingrata. Isso porque o material promocional escondeu tantos elementos do longa, que qualquer detalhe maior da trama atrapalharia a experiência do espectador. Experiência esta tremendamente angustiante e muito bem orquestrada por Jordan Peele, que estabelece a sua lógica narrativa já nos segundos iniciais ao manter a câmera no nível dos olhos da versão criança de Adelaide – e é a jornada desta que seguimos, afinal de contas. Além disso, o senso crescente de tensão é muito bem construído pelo diretor, que nos faz não só estranhar constantemente aquele universo, como aos poucos nos faz temer de forma antecipada o que poderá acontecer.

Assim, as transições entre humor, tensão e ação são muito bem comandadas, conseguindo criar alívios cômicos bem-vindos, principalmente com o bom timming de Winston Duke, que nos permitem respirar aliviados entre uma sequência e outra. Contudo, aqui e ali, o diretor se excede com algumas decisões um tanto óbvias, como ao adotar, de forma irônica, a canção “Good Vibrations” em uma determinada cena, ou mesmo “sumir” com determinados personagens no terceiro ato para se focar no seu principal ponto dramático com menos distrações. Da mesma forma, um certo monólogo explicativo neste mesmo ponto da narrativa se delonga e quebra o ótimo ritmo da produção, ainda que ao final do filme percebamos suas intenções.

Aliás, esta é uma questão recorrente dentro da estrutura de “Nós” (e o principal motivo de minha “confusão” expressa no primeiro parágrafo), já que diversas passagens ao longo da projeção soam como “furos no roteiro” ou “facilitações narrativas”, mas que ao final do filme, com as revelações feitas, percebemos a construção destas. Com isso, o efeito das cenas no momento em que estas acontecem pode se mostrar comprometido, mas ao menos no final do filme elas parecem ter justificativas – e digo “parecem”  pois determinados caminhos do roteiro podem ter criado alguns furos, algo que só uma segundo conferida no filme pode comprovar ou não.

Além disso, “Nós” merece (digo, necessita) mais conferidas também por suas alegorias e desenvolvimento de temáticas, já que desde os segundos iniciais o longa parece estar traçando paralelos significativos entre o mais prosaico e o o excepcional. Peele é hábil ao construir uma narrativa que funcione puramente como filme de terror, mas que ainda possui significados mais profundos, sem soar uma mera repetição de “Corra!”. Não, “Us” não se foca numa situação mais específica para falar de racismo naturalizado e tratar “apenas” de uma questão racial – embora, trate também disto -, o longa se mostra um estado de espírito da sociedade norte-americana, onde se descobre o mal possível em nós mesmos e as narrativas que construímos com a imagem do “modo de vida” perfeito que nos é vendido.

E tudo isso com referências bíblicas, construções temáticas de figurino, detalhes de datas, números e uma montagem extremamente apurada… “Us” é um filme construído nos pequenos atos – inclusive no seu próprio nome, visto que a todo momento enquanto escrevo esta crítica, o auto corretor parece querer mudar para “U S”.

Para que tudo funcione, a narrativa se segura na atuação espetacular de todos os integrantes do longa, em especial da família Wilson, que se mostram indivíduos inteligentes e de fácil envolvimento (estamos não só torcendo por eles por serem os protagonistas, mas por se mostrarem capazes de escapar). Mas o real destaque fica inevitavelmente por Lupita Nyong’o, que em momento algum decepciona e consegue criar todas as nuances de sua(s) personagem(s) nos mínimos detalhes. Estabelecendo uma dinâmica palpável com todos os integrantes da sua família, Nyong’o parece ter sido feita para atuar no terror, conseguindo trazer dubiedade para momentos chaves e olhos extremamente expressivos, que vão da dor a obstinação em segundos.

Gravado ainda com a inteligente fotografia de Mike Gioulakis, que não tenta escurecer suas cenas para criar mais tensão, e detendo um belo dinamismo com a excelente trilha sonora de Michael Abels (ainda que Peele exagere no número de vezes que utiliza desta), “Us” pode até ter sua parcela de tropeços, mas não há como não admirar uma obra que consegue se excepcional no gênero que atua, além de exigir múltiplas revisitas para maior compreendimento do filme.

Revisitas que terei o maior prazer de fazer!