O Diabo e o Padre Amorth

O Diabo e o Padre Amorth
(The Devil and Father Amorth)
Data de Estreia no Brasil: 23/07/2018
Direção: William Friedkin
Distribuição: Netflix

Como nós mesmos repercutimos aqui no rdm logo no começo do ano, o diretor de “O Exorcista” (1973), William Friedkin, havia recebido autorização da Igreja Católica para filmar um exorcismo. À primeira vista, a ideia de um documentário produzido por Friedkin contendo um exorcismo real parece absolutamente sensacional, tanto por conta de sua experiência em ter dirigido o que talvez seja o mais famoso horror de todos os tempos, quanto pela reticência histórica da Igreja Católica em abordar casos de exorcismo conduzidos por seus membros. A filmagem sem precedentes, portanto, despertou a curiosidade mórbida de fãs do horror de todo o mundo, sedentos para verem uma representação “real” daquilo que é e sempre foi uma das principais temáticas do horror. Quando “O Diabro e o Padre Amorth” finalmente estreou, contudo, acredito que muitos deles (eu incluso) gostariam que o ritual tivesse ficado só no imaginário mesmo.

O principal problema estrutural do documentário de Friedkin é gritante logo de início: o diretor demonstra incessantemente que simplesmente não sabia o que fazer com a filmagem que havia obtido. Com uma duração de mais ou menos 18 minutos, o grande “exorcismo real” em si passa longe de ser minimamente impressionante. Com apenas uma câmera de mão, sem iluminação ou qualquer equipe de produção, Friedkin filma parado em pé, do mesmo ângulo, uma sala cheia de pessoas enquanto o padre Gabriele Amorth fala uma enorme quantidade de preces incompreensíveis para Christina, que se debate e grita frases como “nós somos Legião” e qualquer coisa clichê que você possa imaginar como fruto de uma possessão demoníaca. É isso. Irritantemente repetitiva e nem um pouco “cinemática”, a sequência inteira não tem nada minimamente intrigante e me faz desconfiar que seja este o exato motivo de a Igreja nunca ter permitido que um exorcismo fosse filmado: não há nada a ser visto ali.

E não me levem a mal: não estou dizendo que não há nada para se ver ali porque o exorcismo conduzido pelo padre Amorth é uma farsa. Como falam os próprios médicos entrevistados por Friedkin em uma pequena porção lúcida do documentário, parto do ponto de vista de que estas sessões de exorcismo tem um efeito “placebo” e funcionam porque a pessoa, que está imersa em um contexto cultural e social católico, acredita ser aquela a cura para suas aflições. Não importa, portanto, se eu ou você acreditamos na realidade daquilo, apenas se ela e seus familiares o acreditam. E é justamente por isso que “O Diabo e o Padre Amorth” nasce já completamente fadado ao fracasso. Friedkin, provavelmente consciente da natureza falha da filmagem que havia obtido, atira para todos os lados buscando algum aspecto interessante para abordar em seu documentário, tornando-o imediatamente em bagunçado e completamente sem foco, abordando vários assuntos sem qualquer nível de profundidade em nenhum deles.

Para um documentário, a ausência de uma temática central é completamente fatal. Assim, sentamos entediados enquanto observamos Friedkin desenvolver uma espécie de egotrip esquisita e desnecessária ao falar para a câmera sobre sua experiência ao dirigir “O Exorcista” (1973) e sua percepção sobre o tema. O documentário poderia então constituir-se como uma viagem introspectiva partindo da percepção de seu criador sobre a temática do exorcismo (algo que Herzog, por exemplo, faz muito bem). Mas não. Depois de 10 minutos, passamos a uma brevíssima narrativa sobre o padre Gabriele Amorth (afinal, ele está no título), responsável pelo exorcismo. O doc poderia ser então uma complexa biografia sobre a intrigante vida do homem que serviu à resistência anti-fascista na Itália de Mussolini e depois virou o principal responsável por exorcismos na Igreja. Também não. Somos confusamente conduzidos então a entrevistas entediantes de uma mulher e seu irmão, que alegam e recontam como ela teria sido exorcizada com sucesso pelo padre. Depois disso ainda conhecemos Christina e a acompanhamos falar sobre a história de seus mal-sucedidos oito exorcismos anteriores. Só então passamos para o tal “exorcismo real”… e confesso que as entrevistas desinteressantes estavam mais interessantes.

Só depois de 40 minutos de encheção de linguiça e tédio (incluindo a filmagem de 18 minutos que deveria ser o grande destaque), vemos entrevistas extremamente interessantes de cirurgiões e psicólogos, que falam sobre o tema e o caso após assistirem o vídeo com Friedkin. Aqui sim há uma interessante abordagem temática, com considerações sobre cultura e sistemas de crença e como tais fenômenos sociais alteram nossa percepção de realidade e podem até alterar nosso cérebro. Nisso deveria constituir-se o documentário de Friedkin: uma abordagem sua, de médicos e padres sobre o fenômeno, com trechos do exorcismo de Christina exibidos aqui e ali. Mas não. O diretor continua com a natureza bagunçada e episódica de sua fraquíssima narrativa, em um trecho onde interrompe insistentemente um entrevistado para lhe fazer perguntas que moldam a narrativa de acordo com o que o diretor quer, e não com a real opinião do Arcebispo, buscando muito mais uma manchete sensacionalista do tipo “homem de fé admite que tem medo do diabo” do que sua opinião.

Por fim, um desfecho totalmente fabricado e ridículo para a história de Christina expõe ainda mais o quanto Friedkin errou em todos os sentidos possíveis com este documentário. Sensacionalista, raso e totalmente desprovido de inspiração, “O Diabo e o Padre Amorth” é uma síntese de tudo aquilo que tentamos evitar ao abordar o horror em nossos podcasts. Sem saber como abordar o tema ao qual se debruça, Friedkin é egocêntrico e auto-indulgente, abusando da boa vontade de seu público ao conduzir uma narrativa totalmente artificial, ao invés de deixar a história tomar forma por si e apresentá-la de um ponto de vista fílmico e inquisitivo. “O Diabo e o Padre Amorth” não passa, assim, de um conjunto mal-costurado de seções desinteressantes, que não contribuem em praticamente nada para a discussão do exorcismo como um fenômeno, e mais: provavelmente causam dano com sua visão unidimensional e simplista. Me recuso a sequer aceitá-lo como um filme ou um documentário: seu lugar é um canal de “casos reais” no youtube ou algum programa sensacionalista de domingo a noite, não a Netflix.

PS: provavelmente a própria Netflix sabe disso, pois o filme foi lançado hoje e mesmo assim tive alguma dificuldade de encontrá-lo no serviço, uma vez que não está presente em nenhum dos destaques. Simplesmente um fiasco completo.