Raw

Raw
(Grave)
Data de Estreia no Brasil: Ainda não prevista
Direção: Julia Ducournau

Em sua primeira semana na faculdade, a caloura de veterinária Justine (Garance Marillier) é humilhada, tem seus pertences revirados e seu quarto bagunçado e é ainda coagida a se alimentar de carne crua de coelho – mesmo ela afirmando ser vegetariana. Logo o desejo por comer carne aflora em sua mente, fazendo com que a jovem estudante quebre a barreira dos tabus e se entregue ao canibalismo. Sim, este segundo segmento de maior potencial “gore” foi o que chamou a atenção e vendeu o filme pelo mundo todo (há dezenas de notícias quanto à pessoas que vomitaram na sala de projeção), mas é mesmo intrigante perceber como o centro emocional da narrativa, o principal motor repulsivo que choca e gera revolta pelo espectador, são os modos desumanos com que socializações são forçadas naquele ambiente absurdo e real de “veteranos superiores” e “calouros inferiores”.

Isso de forma alguma é um demérito por parte do filme. Na verdade, é uma escolha feita pela diretora Julia Ducournau que, tendo escrito e dirigido este longa, estabelece uma lógica temática e visual de apelo ímpar por não se focar somente no visual, mas por tentar estabelecer uma narrativa bem estruturada e que ainda represente metáforas interessantes. Assim, em sua primeira parte “Raw” foca-se em estabelecer o caráter desumano e desumanizador daquele ambiente que, ironicamente, é frequentado por indivíduos que estão aprendendo como salvar vidas de animais. Porém, sua segunda parte, voltada para canibalismo, se mostra um extensão lógica dos temas e da psicologia da personagem. Isto pode ser mais do que bem exemplificado no momento no qual a protagonista argumenta como estuprar um macaco seria o mesmo que estuprar uma garota, já que mostra a lógica de vida igualitária de todos os indivíduos que Justine possui.

Caso estabelecesse estes temas dessa forma o longa já seria memorável, contudo “Raw” vai além e propõe uma argumentação feminina quanto ao processo de auto-descobrimento e a busca pela aceitação do conjunto social. Sendo escrito e dirigido por uma mulher jovem e francesa, é interessante perceber como o desenvolvimento canibal de Justine se atrela a imagem sensual e predadora que tanto lhe foi cobrada pelos seus veteranos – e isso fica mais do que claro ao vermos um vídeo caseiro que é tratado mais como um flagra sexual do que julgado pelo conteúdo canibal. A jovem jamais é julgada ou analisada pela seu claro brilhantismo acadêmico, mas sim pela imagem que lhe é cobrada e pelo o que ela se sujeita para ser integrada pelo grupo.

Todos estes elementos encontram eco na relação entre Justine e sua irmã Alexia (Ella Rumpf), já que foi mesmo esta quem pressionou a irmã a comer carne como “trote”, o que gera uma espécie de choque duplo por parte de Justine, já que até então ela acreditava que sua irmã ainda era vegetariana. Assim, fica estabelecido um quadro comparativo entre as duas irmãs, fazendo com que projetemos em Justine qualquer alteração que esta detecta em sua irmã, o que cria um engajamento espetacular por parte do espectador que consegue, a partir da dinâmica de ações e reações das duas garotas, perceber um emparelhamento da história das duas – algo que a diretora elucida visualmente quando sobrepõe o reflexo do rosto de Alexia com o de Justine através de um espelho.

Fica mais do que claro que Ducournau está interessada em questionar o caráter de sociabilização humana em um ambiente tão degradante e hierárquico, apontando ainda, de forma sutil ao longo da narrativa, para o caráter epidêmico de tais práticas abusivas de trotes universitários ao longo da história, já que descobrimos que os pais de Justine e Alexia também frequentaram não só a mesma universidade, mas o mesmo curso, passando pelos mesmo “ritos de iniciação” e de aceitação social. Ainda, a cineasta é hábil ao estender tais discussões para um panorama mais geral dos alunos universitários, principalmente com o desenvolvimento do colega de dormitório de Justine, Adrien (Rabah Nait Oufella), e com o plano final dos estudantes de medicina veterinária que, deixando de ser calouros, olham a sua volta como se olhassem para um mundo completamente novo e aparentemente menos turbulento.

Iniciando e fechando a projeção com duas cenas espetaculares em sua dinâmica e que amarram bem o lado dramático e repugnante de sua estória, “Raw” é o tipo de filme que por sua lentidão narrativa muitas pessoas se mostraram avessas e completamente cínicas às sequencias “gore” – pra mim estas geraram a repulsa necessária, mas admito que não chegam aos pés do que o marketing do filme vendeu. O longa conta ainda com uma fotografia fria que permite que quando o vermelho surja em cena este se destaque completamente (parte disso se deve também ao designe de produção que soube perfeitamente utilizar de cores neutras no set em momentos precisos), sendo o tipo de filme que se mostra uma experiência visual satisfatória enquanto assistimos, mas ainda mais impressionante quando a projeção termina e cada vez mais o filme cresce dentro de nós.