Crítica | Shirley

(Shirley)

Data de Lançamento: 05/06/2020 (EUA)

Direção: Josephine Decker

Distribuidora: Neon

 

Shirley Jackson é considerada uma das mais célebres escritoras de terror e suspense do século passado, sendo cultuada e servindo de inspiração para gênios como Stephen King e Neil Gaiman, entre outros incríveis escritores. Por ter tido uma vida bastante reservada, o filme “Shirley” entra de forma fictícia na intimidade da escritora em uma época onde ela escrevia seu segundo livro, Hangsaman, que fala sobre Natalie Waite, garota que, ao se matricular numa escola de artes, tem sua vida completamente metamorfoseada.

 

O filme, baseado no livro de mesmo nome da americana Susan Scarf Merrell, segue o jovem casal Rose e Fred Nemser (Odessa Young e Logan Lerman) que, devido a iniciação de Fred à docência, foram convidados por Stanley (Michael Stuhlbarg), marido de Shirley e tutor de Fred, para ficarem em sua casa até que conseguissem arranjar uma própria, já que Fred trabalharia com ele. Logo a princípio fica claro que ambos os jovens são curiosos e que estão vindo de uma cidade pequena, possuem uma clara ansiedade e insegurança devido a uma talvez maior prospecção a inocência.

 

A primeira interação entre Shirley (interpretada maravilhosamente por Elisabeth Moss) e seu marido, assim como toda a primeira sequência de quando os Nemser chegam na casa do casal Hyman-Jackson, é dotada de uma estranheza característica das histórias de Shirley. São cenas corriqueiras e comuns, mas que parecem desencontradas da realidade, uma descrença crescente toma conta dos personagens desde seus primeiros contatos.

 

Um dos contos mais famosos de Jackson é citado logo no começo do filme. “The Lottery” (A Loteria, 1948) foi o conto que de certa forma catapultou a escritora para o status de desbravadora das mais profundas e cínicas emoções humanas e possui um belo significado aqui na trama, embora de uma maneira extremamente metafórica. A Loteria, para os que não conhecem o conto, fala sobre uma sociedade que anualmente realiza um sorteio em praça pública, em várias partes do país, e o ganhador dessa loteria é apedrejado até a morte. Fala sobre uma mulher que, talvez por sentidos mais aguçados, sentia que era sua vez, e tentou lutar contra isso, sem sucesso.

 

Já Hangsaman, segundo livro da escritora, ganha mais ênfase aqui enquanto a história tem seus desdobramentos. No filme como na vida real, a história do desaparecimento (até hoje não resolvido) de Paula Jean Welden é o ponto de onde Shirley começa a escrever seu novo livro de mistério/suspense. Enquanto Fred começa a passar mais e mais tempo na faculdade junto com Stanley, Rose se vê presa na companhia a princípio nem tão agradável da excêntrica e agorafóbica Shirley, e cada vez mais envolta em suas teias.

 


Shirley é claramente manipuladora, ela tem uma noção a mais sobre como os seres humanos agem, quais seus medos, quais suas fraquezas, e ela usa tudo isso para seus próprios prazeres. Porém é no meio dessa tentativa de manipulação e esquiva que se firma uma cumplicidade entre Shirley e Rose, e até mesmo de Paula Jean (que é também interpretada por Odessa Young), que, obrigadas a passar tempo juntas, acabam percebendo que possuem muitas coisas em comum, talvez até mais do que queiram admitir.

 

O ritmo mais slow burning, mais arrastado, como se não estivesse acontecendo muita coisa importante durante o filme, é mais uma vez uma característica dos escritos de Shirley. Ao empregar uma narrativa mais cotidiana, a autora nos choca com a facilidade e destreza que tem ao nos conduzir a um local que não esperávamos chegar antes. Além disso tudo é muito bem embalado pela trilha sonora e montagem eloquentes o suficiente para nos transportar a uma aura mais subliminar do que a realidade, mas não tão ficcional assim.

 

Todas as atuações estão esplêndidas, em especial Odessa Young (Assassination Nation, 2018) que traz um ar inocente e ao mesmo tempo muito perspicaz a sua Rose. A sempre maravilhosa Elisabeth Moss (O Homem Invisível, 2020) tem um papel não muito fácil, que é nos fazer simpatizar com uma personagem complexa e nem um pouco amigável. A diretora, que embora tenha alguns trabalhos no currículo, não possui nenhum de maior impacto, talvez tenha em Shirley uma demonstração de sua grande capacidade, ao levar uma história de quase 2h de maneira fluida e imersiva o suficiente. 

 

A trama de Shirley consegue ao mesmo tempo ser simples e complexa, desenterrando sentimentos complicados de seus personagens, que mudam constantemente em uma jornada de autoconhecimento e decepções que podem levá-los a locais muito sombrios.