À Sombra do Medo

À Sombra do Medo (ou Sob a Sombra)
(Under the Shadow)
Direção: Babak Anvari
Data de Estreia no Brasil: 15/01/2017

Distribuidora: Netflix

Construir filmes com base em alegorias sociais é uma tarefa ambiciosa, e que quando bem executada merece todos os aplausos do mundo, já que há uma porção de tarefas à serem cumpridas: criar uma narrativa engajante, construir seu roteiro a partir de uma metáfora que ainda acompanhe algum desenvolvimento de personagem, e no fim das contas não dar todas as respostas ao público, para que este saia da sessão discutindo os elementos cinematográficos que corroboram para o desenvolvimento de suas teorias quanto ao significado do filme. Agora, quando um filme de terror resolve tomar tal caminho é ainda mais complicado, já que assustar ou mesmo criar um clima de suspense é uma tarefa que se soma a tais elementos – e não é à toa que o longa “The Babadook” conseguiu chamar tanta atenção ao tomar tal caminho.

O que nos leva a este intrigante “À Sombra do Medo”, um filme que discute opressão sobre mulheres a partir da seguinte premissa: ambientado em 1988 (ultimo ano da Guerra Irã x Iraque), no Teerã, acompanhamos Shideh (Narges Rashidi), uma ex-estudante de medicina que quer voltar aos estudos, mas é impedida devido ao seu engajamento político na revolução de 1979. É então que a narrativa se desenvolve num clima de mistério crescente ao apresentar a ausência de seu marido (que é médico e está servindo na guerra), e o relacionamento de Shideh com sua filha Dorsa (Avin Manshadi), quando a boneca da criança some e a menina acredita que esta foi roubada por um “djinns”. Tudo isso acontece enquanto nós espectadores somos mergulhados num clima claustrofóbico de tensão pelas duas personagens viverem num prédio que constantemente sofre com bombardeios.

Conseguindo conciliar um drama intimista numa narrativa de gênero, o longa sabe bem aproveitar a intersecção entre estes dois pontos, criando suspense ou sustos a partir de uma apropriação de objetos ou cômodos do prédio em que as personagens moram. Assim, “À Sombra do Medo” é o tipo de filme que sabe aproveitar bem os cantos escuros do quadro, que impõe ritmo à narrativa com movimentos de câmera suave que nos submergem na estória que está sendo contada. As técnicas de direção de Babak Anvari (que também é o roteirista) podem não ser revolucionárias, mas estas compõem a narrativa com coerência, com o diretor sabendo realçar o nosso temor quanto ao destino das protagonistas com competência por tratar o terror que se instaura na vida delas de maneira gradual, trazendo um peso de realismo numa estória que envolve uma entidade mística.

É justamente este aspecto de junção da realidade e ficção que o filme brilha em sua abordagem por contar com atuações centrais dignas de nota. Em primeiro lugar temos Narges Rashidi como a protagonista Shideh carregando o longa sem sentir peso algum, preenchendo todas as cenas em que a atriz se encontra com uma figura tridimensional: enquanto fica claro o amor que esta sente por sua filha, também podemos ver o cansaço que se abateu sob a mulher após anos vivendo frustrada pela carreira que queria tomar, ao mesmo tempo em que a atriz é hábil ao ressaltar uma fragilidade necessária (para que possamos sentir medo pelo destino da protagonista) enquanto ainda se mostra uma mulher disposta a encarar tudo pela vida da filha. Ainda, a atuação da pequena Avin Manshadi é uma verdadeira revelação, atriz mirim não cair nem no clichê de “criança adulta”, nem se tornar uma personagem chata e implicante. Manshadi é uma atriz extremamente expressiva e merece nossa atenção.

Sabendo utilizar-se dos elementos mais simples para demonstrar um estado de opressão sobre as mulheres na sociedade que retrata, é curioso observar que todos os objetos envolvidos na história das mulheres do filme é utilizado como uma metáfora para a vida que a sociedade impõe à elas (E NÃO LEIA  OS PRÓXIMOS 2 PARÁGRAFOS ANTES DE VER O FILME. SPOILERS). Após um determinado momento da projeção, fica clara essa perspectiva quando temos três objetos importantes no centro da narrativa: a boneca de Dorsa, o livro de medicina de Shideh e o véu que o djins utiliza para assombrar as duas mulheres. Se prestarmos atenção a este último objeto, podemos reparar que ele já havia aparecido antes no filme numa foto de Shideh e sua mãe, com esta utilizando o véu.

E é assim que o filme sabe construir uma alegoria sobre as mudanças sociais na história das mulheres naquelas sociedade, pois o véu é o símbolo máximo que o filme toma como a opressão conservadora, já que este é utilizado pela mãe de Shideh num período anterior – e a metáfora fica ainda mais clara quando o filme mostra passagens em que homens exigem que a protagonista se cubra, sendo inclusive ameaçada por um oficial. Já o livro e a boneca nos guardam outras alegorias interessantes: o livro de medicina, que fica guardando numa gaveta como uma lembrança dolorosa, é o objeto síntese sobre tudo o que a protagonista já lutou e suas conquistas frustradas, ele é a prova de houve melhoras na sua situação como mulher no país desde os tempos de sua mãe (já que Shideh foi ao menos para a faculdade), mas ainda assim é totalmente reprimido; Já a boneca de Dorsa, além de compor um elemento infantil de esperança para o futuro da menina, completa a metáfora nos instantes finais da narrativa, quando vemos que falta uma parte da boneca que acabou ficando para trás, numa alusão as possibilidades de liberdade que aquela nova geração tem, mas ainda assim de maneira difícil e na base da luta.

“À Sombra do Medo” é no fim das contas um ótimo exercício de gênero (ainda que os sustos não sejam tão efetivos quanto deveriam) e também uma obra instigante que nos lembra o motivo pelo qual amamos o cinema. O próprio início da narrativa já mostra sua originalidade temática ao formar uma estória de fantasmas (pelo menos em sua construção narrativa o filme remete a tais seres) a partir de um míssil que nunca explode, salientando os horrores da guerra sem precisar de grandes truques baratos. O filme cumpre sua premissa ambiciosa em formar uma alegoria, enquanto se mostra uma obra de entretenimento mais do que satisfatória.