“Caixa Preta” e “Mentira Incondicional”
(Black Box) e (The Lie)
Data de Lançamento: 06/10/2020
Direção: Emmanuel Osei-Kuffour / Veena Sud
Distribuição: Amazon Prime Video
Os dois primeiros longas do projeto Welcome to the Blumhouse chegaram ao Amazon Prime dia 06/10, projeto este que causou uma grande expectativa já que a Blumhouse é, junto com a A24, um dos maiores nomes na produção e distribuição de terror atualmente. Os dois longas lançados, “Caixa Preta” (Black Box) e “Mentira Incondicional” (The Lie) possuem vários temas em comum, entre eles amor, família, devoção e identidade, devido a isso, essa crítica é dupla e estruturada em duas partes: a primeira aponta as similaridades e disseca sobre os dois longas e a segunda carrega spoilers de suas finalizações. Mas fiquem tranquilos pois antes disso haverão avisos.
A primeira coisa a se dizer do projeto é: representatividade. Enquanto em “Caixa Preta” temos um elenco majoritariamente negro, além de roteiristas, produtores e um diretor negro, em “Mentira Incondicional” temos a diretora Veena Sud fazendo um trabalho maravilhoso no que pode ser classificado como um remake canadense do alemão “Wir Monster”. Já nos próximos filmes a diversidade continua, com “Evil Eye” e “Nocturne” contando com diretores de ascendência não-americana e não-branca.
“Black Box”, que no Brasil foi traduzido ao pé da letra como “Caixa Preta” – alegoria ao sistema de registro de voz e dados presente em aviões recuperados em casos de acidentes para determinar sua causa – é um thriller dramático onde, após um acidente de carro, Nolan (Mamoudou Athie) perde sua esposa e a memória. Movido pela necessidade de cuidar melhor de sua filha Ava (Amanda Christine), ele decide tentar um inovador estudo experimental de uma famosa neurocientista, Dra. Lilian Brooks, que insistentemente buscava Nolan como paciente desde seu acidente. Após aceitar o tratamento, o rapaz começa a duvidar de toda a sua realidade.
Vale ressaltar que “The Lie” é de 2018 e, embora lançado apenas para o Toronto International Film Festival (TIFF), teve seu lançamento mundial apenas neste mês dentro da plataforma de streaming da Amazon. Em “Mentira Incondicional” conhecemos a adolescente Kayla (Joey King) que, enquanto ia para um retiro de balé com o pai, Jay (Peter Skarsgaard), encontra uma amiga no caminho e decide dar uma carona. O que ninguém esperava é que Kayla fosse acabar empurrando sua amiga para a morte de uma ponte coberta de gelo. A partir daí, Jay e Rebecca (Mireille Enos) precisam colocar de lado as diferenças que causaram seu divórcio para ajudar a filha e abafar ao máximo o caso, em uma jornada que vai lhe custar muita coisa, até a própria sanidade.
Em “Caixa Preta” a família é o que dá forças para que Noah lute por sua identidade, suas memórias e suas lembranças. Essa é a motivação principal do personagem, que se vê em uma situação de desesperança ascendente. Já em “Mentira Incondicional” a devoção à sua filha é algo que leva os pais de Kayla ao olho do furação. Cada vez mais absortos em mentiras, eles precisam ser mais sagazes e sem escrúpulos para sair das situações que acabam se inserindo.
A identidade dos protagonistas também é algo a se apontar. Em “Caixa Preta”, após o acidente, Noah começa a desenvolver atitudes que não condizem com quem ele era antes do trauma. De coisas pequenas como: o laço do cabelo da filha que ele antes colocava de maneira mais apertada até a dúvida se ele violentava fisicamente sua esposa e a agressividade cada vez mais latente em suas ações, como aponta Gary (Tosin Morohunfola), fazem ele questionar se era tão boa pessoa quanto acreditava ser. A atuação de Mamoudou emprega uma dúvida e um terror perfeito entre a perda da sanidade e a busca pela identidade, além do fato de que talvez esteja pondo em risco sua própria filha. Os momentos do terceiro ato do filme mostram uma faceta maravilhosa do ator, que juntamente ao roteiro mostra uma construção e um domínio tão pleno de seu personagem que causa um certo assombro. A simples virada de um acontecimento faz com que sintamos os mais diferentes sentimentos por um personagem que estávamos torcendo alguns segundos atrás.
Em “Mentira Incondicional” os pais começam a se questionar sobre as atitudes de Kayla. O ato de matar uma amiga já é grave o suficiente se for acidental, mas e se não for? As atitudes posteriores da garota são suspeitas (para dizer o mínimo) e os responsáveis pela criação dela, agora, além de todos os acontecimentos, ainda precisam lidar com a culpa de que talvez possam ter perdido sinais importantes sobre a verdadeira índole de sua filha. Flertando entre o luto de um casamento acabado e um complexo de Electra, Joey King faz um ótimo trabalho ao encarnar uma jovem tão cheia de complexidade, assim como Peter e Mireille, que precisam empregar o nível certo de paranoia e amor para com a jovem e ainda lidar com todos os desdobramentos dos seus próprios atos. Meirelle, em especial, merece mais reconhecimento. Desde o início já é estabelecido o quão problemática é a relação entre Rebecca e Kayla e, devido a isso, a postura da mãe da garota (de fazer o máximo possível para proteger a filha) é justificada como compensação de uma possível negligência afetiva de sua parte. Além disso, o desgaste emocional que sua personagem passa do princípio ( uma advogada correta) até o final é perturbador.
Ambas as fotografias são cruas e, embora em “Caixa Preta” tenhamos um tema mais “fantástico”, a direção consegue pôr um tom mais pé no chão mesmo nas sequências do tratamento de memória. Mesmo que a condição de prosopagnosia – condição clínica de não conseguir reconhecer rostos – empregue um tom de terror junto a criatura que Noah vê em seus tratamentos, tudo é colocado em tela da forma menos extravagante possível. Falando na criatura, o trabalho de som sempre que ela aparece é formidável, dando angústia real a todos os momentos em que ela se move da forma mais grotesca que se possa imaginar.
Em “Mentira Incondicional”, porém, a fotografia se mede em tons de cinza e tudo se mescla à neve e ao gelo, primordial para a história. O que destoa, então, ganha destaque . O casaco e a bolsa da amiga de Kayla, Britney (Devery Jacobs), é de um rosa que chama a atenção em raios diante do branco da paisagem, além do casaco levemente azul escuro do pai da garota desaparecida, Sam (Cas Anvar), que foge do preto-branco-cinza presente até então.
ATENÇÃO, A PARTIR DAQUI HAVERÁ SPOILERS DAS DUAS OBRAS
SIGA POR SUA CONTA E RISCO.
O desfecho de ambos os longas, porém, pode ser agridoce.
Em “Caixa Preta” descobrimos que, na verdade, a Dra. Lilian estava em busca da “ressurreição” de seu filho, Thomas, morto há dois anos, e encontrou na morte cerebral de Nolan a oportunidade perfeita para pôr a consciência de Thomas dentro de seu cérebro. Tanto essa premissa quanto, inclusive, a tecnologia utilizada, parecem tiradas de um episódio de Black Mirror, sendo, aliás, uma mescla de três episódios da série procedural: Be Right Back, Playtest, e Black Museum, desse último absorvendo até um pouco de sua tecnologia principal: a Touca Neural. Não que esse mérito seja inteiro da série britânica: o tema tem rima direta com “Frankenstein” e “O Médico e o Monstro”, por exemplo. Mas, por serem obras mais mainstream e recentes, acaba sendo impossível não realizar a comparação.
Em “Caixa Preta” descobrimos que, na verdade, a Dra. Lilian estava em busca da “ressurreição” de seu filho, Thomas, morto há dois anos, e encontrou na morte cerebral de Nolan a oportunidade perfeita para pôr a consciência de Thomas dentro de seu cérebro. Tanto essa premissa quanto, inclusive, a tecnologia utilizada, parecem tiradas de um episódio de Black Mirror, sendo, aliás, uma mescla de três episódios da série procedural: Be Right Back, Playtest, e Black Museum, desse último absorvendo até um pouco de sua tecnologia principal: a Touca Neural. Não que esse mérito seja inteiro da série britânica: o tema tem rima direta com “Frankenstein” e “O Médico e o Monstro”, por exemplo. Mas, por serem obras mais mainstream e recentes, acaba sendo impossível não realizar a comparação.
No mais, como supracitado, é incrível a atuação do protagonista Mamoudou Athie quando descobrimos que, na verdade, ele não é Nolan, e sim Thomas, agressor de sua ex-esposa que faleceu num ato de legítima defesa da mesma. A sensação de perigo que o personagem começa a despertar a partir desse momento de virada é muito precisa e merece ser muito parabenizada. A finalização desse longa é amoroso e feliz, o que não podemos falar do segundo filme do projeto.
Em “Mentira Incondicional” temos uma tentativa final dos pais de Kayla de incriminar o pai de Brittany pelo desaparecimento/assassinato quando, em um momento de completa dissociação, Jay e Rebecca acabam atropelando e matando Sam, deixando-o sem socorro e fugindo. Isso já seria trágico o suficiente se não fosse pelos minutos finais em que Brittany surge na porta da casa da família, viva e bem, afirmando que tudo foi apenas um plano dela e Kayla para que ela fugisse e visitasse seu namorado. Tudo o que a família passou foi em vão, todas as mentiras, tentativas de incriminação e medo de estar possivelmente criando uma psicopata eram falsos, mas o assassinato não. No fim, a família cometeu, sim, um crime, e tudo o que eles passaram, apesar de em vão, foi apenas o começo do inferno. Num final digno de uma comédia de humor sórdido dos irmãos Cohen, o filme acaba com um abraço familiar e sirenes policiais indicando que, apesar de Kayla não ter cometido nenhum crime, nada acabou bem.
Os quatro filmes do projeto Welcome to the Blumhouse têm em seu core a premissa de usar da “família e do amor como forças redentoras ou destrutivas” e é justamente isso o que move os personagens nesses dois primeiros longas, com um tom agridoce em certos pontos. No geral, são boas obras, que não chegam a ser excepcionais, mas que não desapontam o espectador e entregam uma narrativa intrigante e repleta de reviravoltas.
