Lovecraft Country
Data de Lançamento: 16/08/20
Distribuição: Home Box Office (HBO)
Criação: Misha Green
Como já é de consciência quase generalizada e abordamos no texto anterior, H. P. Lovecraft era um preconceituoso de marca maior em todas as esferas políticas imagináveis. Suas obras são um suco concentrado de todas as suas intolerâncias. Então, a sociedade encontra maneiras de se reinventar e atitudes como as do autor passam a não ser mais aceitas – e se tornam crimes. Porém, apesar disso tudo, é inegável a influência de Lovecraft no gênero do horror e na literatura fantástica. Logo, em 2016, surge um livro chamado “Território Lovecraft”, pelo autor Matt Ruff, que transforma pretos em protagonistas das histórias lovecraftianas. Devido a tudo isso, óbvio que não demoraria para uma adaptação chegar às telas, e a HBO foi a felizarda.
Segundo Misha Green (Underground: Uma História de Resistência), criadora, que teve toda a liberdade criativa para construir o universo da série, ela chegou com o projeto para a HBO afirmando ter “uma série do cara**o”. E realmente foi o que ela criou.
Em “Lovecraft Country” seguimos Atticus Turner, que volta da Guerra da Coreia para os Estados Unidos ao receber uma carta estranha de seu pai, que depois descobre estar desaparecido. Junto com sua amiga Letitia (Jurnee Smollet, Aves de Rapina) e seu tio George (Courtney B. Vance, American Crime Story) ele vai em busca de Montrose (Michael Kenneth Williams, Olhos que Condenam), seu pai, numa viagem que vai mudar para sempre as vidas dos envolvidos.
LIVRO x SÉRIE
A série adapta o livro de uma maneira muito livre, fazendo diversas alterações no enredo original, o que faz com que as obras tenham momentos muitos diferentes, inclusive em seu final. O livro é narrado de uma maneira onde cada capítulo se comporta como pequenos contos no esquema total da história, o que talvez, se traduzido para a tela, ficasse um pouco fora da órbita da normalidade que o telespectador está acostumado. Logo, a série segue um roteiro muito mais linear, com seus personagens principais definidos e recorrentes em todos os 10 episódios de duração. Alguns personagens que no livro não são tão importantes, como por exemplo Letitia e Hippolyta, aqui ganham um protagonismo que define a trama.
PERSONAGENS E ABORDAGENS MAIS PROFUNDAS
Um dos benefícios de transformar um livro de 352 páginas em uma série de quase 10 horas de duração é a possibilidade de aprofundar-se na psique de seus personagens. Uma série só é tão boa quanto os seus personagens e isso “Lovecraft Country” tem de sobra. Todos eles têm motivações muito claras, mesmo que demore um pouco para que entendamos e até sintamos apego a eles. Alguns podem ser mais turrões, mais preconceituosos mesmo, mais fechados às relações familiares, mas isso tudo é abordado de uma maneira humana, mostrando que ninguém é perfeito, mas que é importante estarmos sempre em busca do aprendizado.
Coisas não abordadas no livro, como o passado de Atticus na guerra, a sexualidade dos personagens e as relações familiares de Leti e Atticus com seus respectivos parentes servem de pano de fundo para fortalecer nossos protagonistas enquanto a trama principal se movimenta, quase como em um delicado jogo de xadrez onde, quando os peões se movimentam, se você piscar, não vai perceber seu Rei em xeque.
RACISMO, JIM CROW E OS MONSTROS DA VIDA REAL
A série se passa em 1950, época na qual as leis Jim Crow, um código de segregação racial – por incrível que pareça – está vigente e o racismo é uma prática externalizada ao seu máximo. Foi também a década do início da terceira onda da Ku Klux Klan e quando se intensificaram os movimentos de Direitos Civis em todo o país. E é nesse contexto que nossos heróis, negros, estão viajando… por esse “Território Lovecraft”, onde a coisa menos chocante que podem encontrar na esquina seria um monstro de verdade.
Misha Green, em entrevista, disse que “Os monstros são as pessoas. E as pessoas e a história são reais.” E é sobre isso que se trata Lovecraft Country, uma série que vai muito além do fantástico e do intangível. Ela toca em feridas permanentes da sociedade, fala do racismo internalizado, da sensação de insegurança constante do povo negro, sobre como não é necessário colocar monstros e magias na equação para fazer com que aquelas pessoas se sintam mais vulneráveis.
[ABRIREI AQUI UM PARÊNTESES PARA UM TRECHO COM SPOILERS]
Uma das metáforas mais inteligentes para mim, junto com um dos melhores episódios da série é a do episódio oito, Jig-A-Bobo. O episódio foca em Diana após a morte de seu amigo Emmett, assassinado por policiais brancos de forma extremamente violenta. No começo do episódio, em um debate sobre se era necessário levar Diana ao funeral, Montrose fala que este “é um ritual de iniciação de toda criança negra”. Após não aguentar a pressão de ver seu amigo morto – e sua mãe desaparecida – Diana foge e acaba sendo encurralada por dois policiais brancos (praticantes de mágica), que estavam procurando por Hippolyta, sua mãe, e amaldiçoam a garota. A partir daí tem início o episódio que julgo de fato assustador da série, com Diana sendo perseguida por duas entidades que apenas ela consegue ver.
As entidades são uma referência a “picaninny”, palavra originalmente das Índias Ocidentais que foi transmutada em calúnia racial para se referir a crianças negras. As picaninny tem a visão colonialista do povo negro: olhos esbugalhados, bocas vermelhas e enormes, sem a mínima coordenação para andar. Elas possuem garras no lugar de unhas, estão sempre à espreita de Diana, que não se sente segura em lugar nenhum. “É um ritual de iniciação de toda criança negra.”
Durante uma cena próxima ao fim do episódio ouvimos o discurso em off de Naomi Wadler na Marcha Pelas Nossas Vidas, em março de 2018. Entre outras coisas, a garota fala sobre como a criança negra está dez vezes mais propensa a se tornar uma vítima de violência. O caso de Emmett Till que perpassa o episódio inclusive é baseado em um caso verídico que foi o pontapé para uma enorme mobilização social.
[FIM DOS SPOILERS]
Embora os dois primeiros episódios da série sejam um pouco confusos, como se não soubessem exatamente a direção que estavam tomando até então, a série é uma grande coletânea de acertos, que chegou em uma hora mais que perfeita junto com “Watchmen”, também da HBO. A luta antirracista procura aliados – mesmo que comercialmente falando – e um produto de entretenimento como esse pode passar uma mensagem de uma forma extremamente didática, ainda que revestida de aventura fantástica.
O horror social de “Lovecraft Country” rouba a cena dos monstros reais, sendo o terror que domina as nossas emoções na maior parte do tempo. Mesmo tendo sido vendida como uma minissérie, Misha Green e o co-produtor executivo Jordan Peele procuram um sinal verde da emissora para uma segunda temporada, e aqui estamos mais que ansiosos caso aconteça.