Crítica | Ruptura (1ª Temporada)

Ruptura (1ª Temporada)
(Severance – Season 1)
Data de Lançamento no Brasil: 18/02/2022 (Apple TV+)
Criação: Dan Erickson
Distribuição: Apple TV+

A complexidade da mente humana, por si só, já foi trabalhada, esmiuçada e aprofundada de inúmeras formas pelos mais diversos setores audiovisuais. Milhares de filmes, documentais e ficcionais, se dispuseram a  tentar explicar, ou ao menos retratar, algumas das incoerências da nossa racionalidade frente a emoções e circunstâncias inesperadas, além dos sempre dificultosos conflitos internos e/ou externos. No ramo das séries de TV, já tivemos bons exemplos do quão confuso, intrincado e até periculoso nosso cérebro pode ser, mesmo quando menos deveria. 

É inegável que, neste ramo, a Netflix lidera a influência sobre o tema dentre os demais streamings, uma vez que nos surpreendeu com obras memoráveis como: Black Mirror (2011-2019), famosa série britânica adquirida posteriormente pela plataforma, que discorre sobre a influência da tecnologia nas nossas relações interpessoais e sobre o primitivismo de nossas escolhas e nosso modo de vida; The Sinner (2017-2021), seriado que questiona a maneira sinuosa como o nosso consciente e inconsciente podem lidar com traumas; Mindhunter (2017-2019), série produzida e dirigida por David Fincher e extremamente calcada em eventos reais, uma vez que expõe e desenvolve as possíveis razões sociais e psicológicas (ou a ausência delas) que levam assassinos em série a cometer tantos crimes hediondos; Maniac (2018), uma minissérie estadunidense com Jonah Hill e Emma Stone no elenco, que discorre sobre as relações entre cobaias de um medicamento que promete sanar transtornos mentais.

A lista é grande, mas a verdade é que este é o ano da Apple TV+ apresentar o seu seriado original a respeito das incontáveis peças que nossa mente pode pregar ao se sentir ameaçada, relaxada ou simplesmente captar algum elemento sonoro ou visual que remeta à uma lembrança remota. Estou falando de Ruptura, distópica série criada por Dan Erickson, que inclusive roteiriza os dois primeiros e também o último episódio da primeira temporada. Com uma diversidade de temas e questionamentos sobre vidas pessoais e profissionais, a série explora convincentemente tramas e subtramas que rendem bons comentários sobre nossas atuais condições sócio-culturais, ironizando alguns dos possíveis avanços tecnológicos para os quais muitos de nós estão trabalhando atualmente, enquanto critica sutilmente (e até comicamente) nossas decisões e a maneira como decidimos nos relacionar uns com os outros.

Na série, acompanhamos um grupo de funcionários de uma gigantesca porém misteriosa indústria de biotecnologia chamada Lumon, que obriga alguns de seus empregados a realizarem, uma “ruptura”, processo médico que faz com que sejam separadas as memórias não relacionadas ao trabalho (suas vidas pessoais), de suas memórias de trabalho. Neste grupo, o maior destaque vai para o protagonista Mark (Adam Scott), um funcionário que passa a descobrir gradativamente, com a ajuda de um ex-colega, uma perigosa teia de conspiração envolvendo a corporação para a qual trabalha. Sem saber a vida que leva fora da empresa durante seu trabalho, ou mesmo sem saber com o que trabalha após o expediente, resta a Mark encontrar uma forma de conectar as informações e as memórias entre seu eu interno (funcionário) e seu eu externo (vida pessoal), para que consiga convencer seus colegas e bolar um plano para destruir a empresa.

Enquanto em sua vida pessoal tenta lidar com o luto pela morte de sua esposa Gemma, contando com a ajuda de sua irmã e seu cunhado, durante o trabalho Mark se relaciona com outros 3 colegas, o corajoso e simpático Dylan (Zach Cherry), o iludido e defensor das políticas da empresa Irving (John Turturro) e a novata e rebelde Helly (Britt Lower). Todos atuam no departamento de refinamento de microdados, sem saber o que exatamente fazem e de que forma seu trabalho influencia a empresa e o mundo afora. Extremamente controlados pela autoritária superior Cobel (Patricia Arquette, simplesmente arrebatadora), pelo severo supervisor Milchick (Tramell Tillman) e pelo sinistro chefe de segurança Graner (Michael Cumpsty), o grupo de funcionários começa a vivenciar experiências frustrantes durante o horário de trabalho, que os fazem se revoltar contra o sistema e resolver encontrar respostas.

O ambiente tóxico e disciplinar da Lumon se evidencia desde uma ótima fotografia de enquadramentos claustrofóbicos e simétricos, até uma impressionante direção de arte que usa e abusa de quinas e formas geométricas para nos causar desconforto, além de imensos e labirínticos corredores brancos, cores frias e escuras, e uma composição de cenários angustiante. A música de Theodore Shapiro representa também um papel fundamental nessa construção, tirando completamente o espectador de sua zona de conforto e nos convidando a adentrar uma realidade extremamente repulsiva. Somos levados rapidamente pelas motivações dos personagens, essas muito bem esclarecidas, e principalmente pelas descobertas sombrias dos mesmos, nos tornando mais e mais curiosos para encontrar respostas e entender o que de fato acontece dentro e fora daquela empresa.

Aqui, sobram reflexões acerca dos precários e desumanos métodos trabalhistas surpreendentemente e infelizmente ainda presentes em tantas empresas pelo mundo, além de nos fazer questionar sobre as verdadeiras vantagens do progresso tecnológico, mesmo que através do cada vez mais discutível livre arbítrio. Talvez uma das maiores mensagens da série, entre tantas das apresentadas, seja sobre como nossos impulsos emocionais e decisões simplistas, independente de termos razão ou não, podem acabar por trazer problemas improváveis não somente para nós mesmos, mas sim para todos aqueles que nos cercam.

A direção da série, assinada principalmente pelo também produtor executivo Ben Stiller, simplesmente garante que todos os seus aspectos técnicos não somente tenham seus momentos de brilho, mas também caminhem juntos para favorecer um poderoso roteiro com muito a dizer e a propor, mas também muito a entreter. Em meio a tantas deliciosas questões e problemáticas levantadas pela narrativa, a mesma nos brinda com um enredo primoroso, que garante muito mistério, drama e ficção científica em um universo próprio cuidadosamente arquitetado pelo estreante Dan Erickson, repleto de distopia e criativos alívios cômicos diante de um suspense psicológico de primeira, capaz de envolver até o mais exigente dos espectadores.

Muito além de um divertimento garantido e um irresistível gancho ao final de seu episódio final, Ruptura nos alerta para boa parte do terror social, psicológico e profissional enfrentado por tantos de nós diariamente. Seus momentos de tensão, seu alto nível de imprevisibilidade e a forma ousada e singular com a qual constrói a personalidade de seus personagens, além das relações entre os mesmos, torna a segunda temporada do seriado uma das mais aguardadas entre os próximos lançamentos televisivos de 2023. A série se mostra desde já uma das mais agradáveis surpresas de 2022 e se junta facilmente a outras grandes produções da “plataforma da maçã” como Servant, Calls e Ted Lasso, auxiliando a consolidar de vez a Apple TV+ como um dos mais promissores e responsáveis serviços de streaming da atualidade.