Doutor Sono
(Doctor Sleep)
Data de Estreia no Brasil: 07/11/2019
Direção: Mike Flanagan
Distribuição: Warner Bros.
Não seria fácil e todos os fãs já sabiam disso desde o início. Criar a sequência cinematográfica de um dos maiores clássicos do cinema de horror psicológico é por si só extremamente complicado. Porém a tarefa de continuar os eventos de O Iluminado (1981), na adaptação do livro Doutor Sono, escrito por Stephen King, felizmente caiu nas mãos do cineasta correto. Mike Flanagan não somente já possui uma invejável filmografia no gênero de horror, como também já adaptou um livro de King, Jogo Perigoso, para um filme homônimo distribuído pela Netflix em 2017. Se o propósito de Doutor Sono foi trazer algo de realmente novo e relevante para o universo tão bem construído por O Iluminado, a obra pode ser facilmente considerarada uma falha completa. Mas se na verdade a busca foi apenas envolver o público com uma história convidativa, enaltecer os feitos do filme anterior e ainda promover interessantes reflexões sobre esperança e autoconhecimento, Doutor Sono se saiu definitivamente bem.
Após sua traumatizante infância com seu pai, o sobrevivente Danny Torrance (Ewan McGregor) se tornou um adulto alcoólatra e desesperançoso, que ainda mantém seus “dons”. Ao conseguir um improvável emprego em um hospital local, a vida de Danny parece estar tomando um rumo, mas tudo vira de cabeça para baixo quando uma misteriosa garota chamada Abra (Kyliegh Curran) passa a se comunicar telepaticamente com Danny e pede sua ajuda para encontrar um grupo de assassinos com poderes sobrenaturais.
Aqui as influências de terror e suspense se apresentam mais como uma base para relembrar os traumas de Danny e introduzir os objetivos da trama, para ao fim, alcançar a esperada relação dramática entre os personagens e o espectador. O filme perde um tempo considerável apresentando alguns personagens que por fim se mostram pouco importantes para a história, e também abusa dos efeitos especiais em certas cenas, mas mesmo nesse abuso, não há uma espetacularização barata dos eventos sem necessidade, como Hollywood está cada vez mais acostumada a fazer.
Ewan McGregor está bem em um papel que não exige tanto de sua interpretação. A jovem Kyliegh Curran embora impressione em algumas cenas, deixa a desejar na maior parte do tempo, enquanto na verdade quem brilha durante o filme é Rebecca Ferguson, que interpreta uma assassina misteriosa com olhares que transmitem perigo e sensualidade ao mesmo tempo. Com aspectos técnicos invejáveis, Flanagan refaz cenas de forma ainda mais assustadoras, além de criar uma ou outra sequência de tirar o fôlego. O design de produção trabalha de forma intensa e fiel, principalmente ao retratar o Hotel Overlook. A fotografia de Michael Fimognari (parceiro de longa data do diretor) espelha uma fluidez e uma segurança que ajuda no dinamismo da narrativa, assim como a ótima trilha musical de The Newton Brothers (também velhos amigos de Flanagan), que mantém algumas das características da trilha original de O Iluminado, incluindo o tema principal, além de incluir boas faixas carregadas de tensão e drama.
A obra se propõe a dissertar sobre diversas temáticas. Ainda que Abra pareça ter um papel mais fundamental para a trama do que Danny, é no problemático filho de Jack Torrance que vemos o maior arco de personagem. De forma cativante, a relação entre Abra e Danny se constrói gradativamente, até que Danny tome coragem e se sinta determinado a ajudar Abra. É um homem que passa a enfrentar seus medos, assumir seus dons e a ter esperança em uma vida melhor, deixando de lado seus vícios degradantes e suas inseguranças. Apesar de algumas dessas temáticas serem apontadas através de cenas quase nada originais (não é nada que já não vimos antes), a obra sustenta seu enredo e nos mantém preso por meio de seus diálogos profundos e um sentimento de antecipação intrigante.
Em muitos momentos, mais precisamente durante os dois primeiros atos, ficamos com a sensação de que Doutor Sono não precisaria ocorrer no universo de O Iluminado, por Danny ter uma função praticamente coadjuvante no enredo, uma vez que o enfoque está em Abra e sua busca por justiça. Talvez o filme/livro de fato até funcionasse melhor num contexto diferente, em um universo particular, mas após a finalização do terceiro ato, simplesmente nos sentimos gratos pelas referências e homenagens ao clássico de Kubrick, e pelo filme de Flanagan fazer parte dessa história. O resultado de Doutor Sono nada mais é do que uma continuação competente, que irá inevitavelmente dividir os fãs do primeiro filme, mas que no mínimo nos presenteia com cenas memoráveis (além de nostálgicas) em uma ótima combinação de terror e drama, no melhor que o diretor sabe fazer.