O Poço
(El Hoyo)
Data de Lançamento no Brasil: 20/03/2020
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Distribuição: Netflix
Há três tipos de pessoas: os de cima, os de baixo e os que caem. É dessa forma que somos apresentados ao poço, uma grande estrutura que divide pessoas em duplas e em níveis. Quando mais elevada nessa escala, mais acesso a alimentos a dupla possui, porém, nos níveis mais baixos encontramos o horror da falta de recursos, nos deparamos com a fome. O que choca é a desigualdade: para os privilegiados há abundância, fartura, até mesmo exagero. Para os menos afortunados, a morte é uma possibilidade muito próxima.
De início somos apresentados a dois personagens: Goreng e Trimagasi. O primeiro entrou no poço de forma voluntária, o que nos faz questionar se a estrutura é realmente uma prisão ou algo mais – não fica muito claro o que é o poço. Trimagasi, mais velho e já conhecedor do funcionamento do sistema afirma que por terem acordado no nível 48, eles estão com sorte, ali ainda chegam alguns restos.
Goreng procura se comunicar com os de cima e os de baixo. Trimagasi rapidamente o adverte: “não chame os de baixo, os de cima não vão responder”. Os dois se deparam com uma estrutura maior e mais antiga que eles. O homem mais velho compreende as regras internas e tenta transmiti-las ao mais jovem. Este tem uma visão mais idealizada, de que ele pode conseguir conscientizar os de cima a deixar comida para os de baixo. O outro, porém, desdenha das suas intenções. Vivendo já há alguns meses dentro da estrutura, Trimagasi não possui esperanças de mudá-la. Ele procura sobreviver dentro das regras apresentadas. Junto à sobrevivência, ele também se aproveita de sua posição privilegiada para oprimir e humilhar os de baixo.
A metáfora da narrativa é bastante óbvia – uma palavra que acompanha a jornada de Goreng. A desigualdade somada à individualidade resulta na morte dos que estão mais abaixo da estrutura. As cenas passadas nesses níveis mais baixos, aliás, são recheadas de sangue e violência. Assim que acorda no nível 171, o protagonista percebe que a vida no poço não é tão fácil de ser compreendida.
Goreng começa a sua jornada como um idealista constantemente contrariado pelas percepções de seu companheiro mais velho, que parece entender como as coisas funcionam. Sua vontade de mudar a estrutura logo se depara com um obstáculo que ele não havia colocado na equação: os outros habitantes do poço. Seu discurso lógico não se mostra suficiente para superar o individualismo dos que estão nos outros níveis, em especial nos superiores.
O Poço (2020) discute a sociedade capitalista – assim como Parasita (2019) – de uma forma alegórica. O cenário limitado lembra Cubo (1997), filme em que prisioneiros são confinados em um espaço limitado, porém que aparenta não ter fim. Todos os prisioneiros têm direito a seu prato favorito, porém, não é certo que vão conseguir comê-lo. Os que estão em cima não apresentam nenhuma inclinação de ajudar os de baixo e, por vezes, até mesmo os prejudicam. O filme consegue nos prender e nos assustar ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre o individualismo presente em nossa própria sociedade.
PARTE DA CRÍTICA COM SPOILERS:
Após a morte de seu companheiro no nível 171, Goreng acorda no favorecido nível 33 com uma mulher que levou um cachorro para o confinamento. Descobrimos que ela foi a pessoa que o recrutou para aquele ambiente infernal. Ela também não cometeu crime algum e foi para o poço de forma voluntária. Essa personagem é um ótimo contraponto ao novo Goreng, que após passar por um nível de baixo, perdeu aquele idealismo apresentado no início. Até mesmo sua forma de convencer os outros muda. O discurso lógico dá lugar a ameaças que ele só pode pronunciar devido à sua posição privilegiada.
Sua companheira de confinamento não resiste, porém, ao nível 202. Ela, inclusive, não sabia da existência de um nível tão baixo. Nele não havia sequer a mais remota possibilidade de que chegasse algum alimento. Goreng se vê novamente sozinho, tendo que recorrer a uma dieta extrema.
Quando acorda no nível 6, o protagonista vislumbra uma esperança. Ele quer quebrar a lógica do poço. Para isso conta com um companheiro que o ajuda na descida. O objetivo primário era levar comida aos níveis mais baixos, acabando com a desigualdade intrínseca à estrutura. Digo intrínseca, pois quando descobrimos o quão fundo o poço vai, paramos de acreditar na ideia de que sobraria comida se cada um comesse somente o necessário.
A descida não é tranquila. Muitas vezes eles precisam entrar em embates físicos para proteger os alimentos. Em um momento um dos prisioneiros questiona: “quase morri mês passado, onde estavam vocês?”. Uma pergunta muito similar provavelmente já foi feita a muitos de nós quando lutávamos por uma causa. “Onde estava você quando tal coisa aconteceu?”. No caso do filme, a pergunta vem de alguém que, por mais que não concorde com o sistema estabelecido, já se habituou e está acomodado com o funcionamento do poço.
O filme termina com uma esperança, talvez menos que isso. Não sabemos o que irá acontecer quando a menina chegar no nível 0. Os funcionários do poço realmente se compadeceriam da situação, ou ela seria jogada novamente em um dos níveis? O final aberto nos apresenta possibilidades de reflexão sobre nossa própria realidade: o que fazemos quando nos deparamos com os horrores da estrutura?
É claro que tudo pode não ter passado de uma alucinação. Não podemos confiar totalmente nas percepções de Goreng e Baharat, principalmente após o conflito em que ambos saem muito feridos. A garota que o protagonista encontra pode ter sido apenas fruto de um delírio. O final aberto que nos é apresentado permite diversas interpretações diferentes. Elas não escapam, porém, da desigualdade entre os níveis do poço.