Crítica | Missa da Meia-Noite

Missa da Meia-Noite (Minissérie)
(Midnight Mass)
Data de Lançamento no Brasil: 24/09/2021
Criação: Mike Flanagan
Distribuição: Netflix

Quantas vezes nos questionamos a fundo sobre vida, morte, propósito, amor próprio e aceitação? Temos realmente capacidade de resistir ao atraente poder que nos seduz, tendo em mente as perigosas consequências sociais que o mesmo implica? Esses são apenas alguns dos temas trabalhados na nova minissérie da Netflix, dirigida e escrita pelo sempre habilidoso Mike Flanagan, responsável por duas outras séries de horror dramático marcantes da plataforma, A Maldição da Residência Hill (2018) e A Maldição da Mansão Bly (2020), além de inúmeros filmes relevantes do gênero. Em Missa da Meia-Noite, o diretor continua a trabalhar histórias emocionantes envoltas de traumas, vícios, e da nossa intrínseca necessidade de amor. No entanto, dessa vez, também nos convida a refletir sobre os males da fé cega e de sua influência em nossa sociedade atual.

A história se passa em uma pequena e remota ilha em algum lugar no noroeste do Pacífico, habitada por uma comunidade de pessoas religiosas que se reúnem frequentemente na única igreja da ilha. Acompanhamos Riley Flynn (Zach Gilford), um ex-alcoolista e presidiário que acaba de retornar à ilha após quatro anos na cadeia. Quem também surge no lugar, quase que ao mesmo tempo, é o atencioso padre Paul (Hamish Linklater), que chega para ministrar as missas da ilha e cuidar espiritualmente dos moradores, substituindo o monsenhor responsável pela capela, que ali vivia há muitos anos e teve de se afastar por motivos de saúde. Quando acontecimentos misteriosos e supostos milagres começam a ocorrer na ilha, diversos segredos vêm à tona e a vida dos habitantes parece estar cada vez mais em perigo, devido à uma ameaça sobrenatural que ronda a civilização.

É importante esclarecer desde já aos espectadores mais desavisados que Missa da Meia-Noite é sem dúvidas a obra de Flanagan que menos explora o terror visual que tão bem conhecemos por seus trabalhos anteriores. Ao mesmo tempo, é talvez o que mais trabalhe o “horror” propriamente dito, presente nas inúmeras camadas sociais e culturais daquele povo, camadas essas tecidas com esmero pelo roteiro. A minissérie, elaborada muito mais como um drama analítico, sabe muito bem controlar a hora exata de nos assustar e até apavorar, usando de seus raríssimos e sutis efeitos especiais. E a melhor parte disso tudo é que nosso extremo envolvimento com a forma pela qual cada uma das famílias e personagens são apresentados não nos permite sequer possuir fôlego para apontar qualquer ausência do terror que criou a fama de Mike Flanagan no cinema e na televisão.

Flanagan volta a dirigir todos os episódios de uma série, diferentemente da citada A Maldição da Mansão Bly (2020), na qual dirigiu e roteirizou apenas o primeiro episódio. Aqui, é evidente que o diretor trabalha seu enredo de forma muito mais íntima e paciente. O cineasta, que anteriormente já nos demonstrou saber desenvolver muito bem cada um de seus personagens sem a pressa que a duração de cada episódio pode causar, prova mais uma vez que é, atualmente, um dos poucos realizadores estadunidenses capazes de nos entreter, comover e encantar com profundos diálogos, além de longos, belos e até terapêuticos monólogos de seus personagens, que não se fazem expositivos e cansativos em momento algum. Pelo contrário. Tornam-se a grande força da minissérie desde os primeiros episódios, pois nos vemos tão presos diante da narrativa construída até ali que queremos conhecer mais sobre aqueles moradores tão cheios de personalidade, passado e histórias.

Esteticamente sublime, Missa da Meia-Noite se destaca em praticamente todos seus aspectos técnicos, desde o impecável design de produção até a ótima fotografia de Michael Filmognari. Parceiro de longa data do diretor, Filmognari empenha-se em manipular uma paleta de cores mais quente que em outros projetos de Flanagan (dominados por cores frias e baixa iluminação), aqui utilizando de tons pastéis para retratar a suposta monotonia e desesperança da ilha de Crockett. Quem também carrega um papel bem diferente do que apresentado em obras anteriores é a dupla de compositores The Newton Brothers, que nos serve com uma trilha musical de cantos religiosos e notas desarmônicas extremamente eficientes, nos deslumbrando e delicadamente aumentando nossa tensão.

Ainda que praticamente todos os personagens sejam bem interpretados pelo ótimo elenco, dois atores realmente se destacam em praticamente todas as cenas que aparecem. O primeiro é Hamish Linklater, que carrega muito bem o carisma de seu enigmático personagem (padre Paul), ao mesmo tempo em que nos envolve com o sentimento de culpa em seus olhos cansados. Já a segunda é Samantha Sloyan, que não mede esforços para fazer de sua personagem (Bev Keane) uma fanática religiosa detestável e intolerante, capaz de fazer de tudo para que seus objetivos sejam cumpridos. A atriz e esposa do diretor, Kate Siegel, também merece aplausos por sua ótima performance como Erin Greene, uma professora racional e corajosa que possui uma queda por Riley (protagonista) desde a adolescência.

Missa da Meia-Noite conversa sobre muita coisa em pouco tempo, mas, diferente do que pode parecer, nada se constrói de maneira atropelada. O roteiro da série encontra e dedica tempo o suficiente para trabalhar de forma agradável diversos temas que apenas evidenciam o horror dramático e humano presente nas relações sociais, pautadas aqui principalmente pela fé, pelo perdão e pela dignidade. O horror sobrenatural também se faz presente, ainda que em momentos específicos, garantindo o medo do espectador diante de circunstâncias aflitivas e torturantes. Flanagan, que já coleciona tantos acertos em sua filmografia, nos traz dessa vez uma minissérie cativante, tocante e acima de tudo necessária, com o teor crítico preciso para nos fazer meditar sobre nosso caráter individual e coletivo, além de nossa capacidade de amar, acima de tudo, a nós mesmos.