Crítica | Titane

(Titane)
Data de Lançamento: 14/07/2021 (França)
Direção: Julia Ducournau
Distribuição: Diaphana Distribution (França) e Neon (EUA)

O que exatamente você, leitor, busca ao assistir um filme? Deseja simplesmente se divertir com um roteiro dinâmico, que, embora previsível, te faz sair da sua realidade por alguns minutos? Ou prefere se surpreender com uma experiência cinematográfica que pretende te angustiar, impactar e/ou provocar reflexões acerca do mundo em que vivemos? Há formas e formas de se envolver com uma obra audiovisual, e talvez todos nós devemos experimentar abordagens novas, cada uma delas em seu determinado momento. 

O fato é que muitos cineastas já provaram que o mundo do cinema, em específico, do horror, pode ser muito mais do que um puro entretenimento despretensioso. Entre eles, um excelente nome do cinema europeu recente é Julia Ducournau, que, desde seu primeiro longa, o ótimo Raw (2016), soube explorar com originalidade e naturalidade o subgênero do body horror, enquanto disserta sobre os impulsos humanos e as possíveis consequências desastrosas de nosso comportamento. Agora, com seu segundo e mais novo filme, Titane (2021), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, a diretora francesa continua a nos impressionar com sua visão do gênero e com as imensas camadas temáticas e sociais existentes em suas obras, provando que seu talento jamais poderia ter sido refém de uma sorte de principiante.

Em Titane, acompanhamos Alexia (Agathe Rousselle), uma modelo de showroom de carros que possui uma placa de titânio em seu crânio desde criança, quando sofreu um acidente de carro. Logo após começar a desenvolver uma estranha atração sexual por automóveis, Alexia passa a cometer diversos assassinatos brutais, enquanto se depara com uma gravidez inesperada e incomum. Pouco tempo depois, um bombeiro de meia idade chamado Vincent (Vincent Lindon), se encontra com um homem misterioso, o qual acredita ser seu filho perdido.

Ducournau, que também dirigiu os dois primeiros episódios da segunda temporada da série Servant, demonstra novamente uma facilidade admirável em nos chocar com cenas extremamente aflitivas diante de situações cotidianas, naturais. A forma como a diretora enquadra a protagonista diante de ambientes hostis e, principalmente, ao alternar entre os close-ups nessas cenas, revela circunstâncias bizarras, porém realistas, capazes de embrulhar os estômagos de muitos espectadores mais de uma vez. É importante saber que, mesmo que nem sempre de maneira direta, o novo filme de Ducournau possui muita relação com seu trabalho anterior, como por exemplo o fato da atriz Garance Marillier (que interpreta a protagonista de Raw) aparecer em Titane com o mesmo nome de sua personagem anterior. Mas não somente isso. Há uma semelhança na construção da relação entre os personagens, com poucos diálogos e uma profundidade dramática que transcende a tela. Aqui, os olhares e as ações falam mais alto, permitindo que o público assista atentamente cada segundo para decifrar possíveis mensagens e significados por trás de determinadas cenas.

O ritmo lento da obra favorece a interpretação do público, além de permitir que percebamos que, assim como a protagonista, não estamos seguros em nenhum momento, afinal, o roteiro quebra frequentemente qualquer faísca que remeta à uma situação de conforto. Assim como a vida de Alexia, a imprevisibilidade e as adversidades preenchem os planos e as sequências mais cadenciadas. Se a direção de fotografia e o design de produção nos envolvem por sua sincronia e apelo visual, nos vemos muitas vezes distantes de nos identificarmos com as atitudes da protagonista. Na tentativa de colocar o espectador num lugar de mera apreciação e reflexão narrativa, Titane nos impede de sentir e nos projetar na pele de Alexia da forma que gostaríamos.

Sem trazer maiores spoilers, é justo dizer que Titane é, acima de tudo, uma história de amor. Mas não um amor idealizado como nos filmes hollywoodianos, repletos de cenas apaixonantes. Um amor humano, capaz de ser encontrado entre quaisquer dois corpos que sofreram e ainda sofrem, mas que encontram em sua relação compaixão o suficiente para que continuem a enfrentar os demônios presentes em nosso dia a dia. Nesse meio tempo, Julia Ducournau ainda encontra espaço para inserir diversos questionamentos relevantes, como, por exemplo, as convenções sociais e os infrutíferos estereótipos que não ditam o que de fato é feminilidade ou masculinidade, sendo ambos não opostos, mas sim essências que se complementam, muitas vezes em um mesmo ser. Há também possíveis comentários sobre como as relações humanas, especialmente familiares, estão se tornando cada vez mais mecânicas e frias.

Reservando muitas cenas imperdíveis para os amantes de um bom body horror, Titane se mostra uma obra muito mais intensa do que parece, indo muito além do simples choque visual. Onde o drama familiar e o suspense psicológico se encontram e se somam, a necessidade de amar e de se sentir amado fala mais alto. Mesmo diante de um enredo nem sempre satisfatório, nos vemos, do início ao fim, agarrados à peculiar e ousada trama proposta pela roteirista e diretora Julia Ducournau, um nome para se prestar atenção.