Estou Pensando em Acabar com Tudo

Estou Pensando em Acabar com Tudo
(I’m Thinking Of Ending Things)
Data de Estreia no Brasil: 04/09/2020
Direção: Charlie Kaufman
Distribuição: Netflix

Para quem é fã do diretor e roteirista Charlie Kaufman, ou pelo menos aprecia algumas de suas memoráveis obras, sabe exatamente o que esperar da adaptação do livro escrito por Iain Reid. Responsável pelos roteiros inventivos de produções como Quero Ser John Malkovich (1999), Adaptação (2002) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Kaufman, que teve sua estréia na direção em 2008, com Sinédoque, Nova York, é reconhecido por trazer um espírito engenhoso e ousado para suas tramas, abordando temas como relacionamentos amorosos e as complexidades de nossa natureza humana. Em Estou Pensando em Acabar com Tudo, da Netflix, o realizador parece adentrar pela primeira vez em um clima sombrio e misterioso, nos convidando a conhecer uma história bem mais audaciosa do que sua breve sinopse, seu trailer de divulgação e os primeiros minutos de filme podem sugerir.

A trama segue uma jovem garota (Jessie Buckley) que está prestes a conhecer os pais de seu namorado Jake (Jesse Plemons), porém o que ela esconde é que pretende terminar o relacionamento. Ao chegarem na casa dos pais de Jake, os mesmos aparentam apresentar pequenos tiques e comportamentos estranhos, que só aumentam conforme coisas ainda mais bizarras começam a acontecer na casa.

Para os amantes do terror psicológico e do suspense convidativo, é evidente que Estou Pensando em Acabar com Tudo é o filme de Kaufman que mais se aproxima desses gêneros. Porém é importante ter em mente que esta é uma obra profundamente diversa, que abrange uma série de sentimentos que se encaixam no drama, no romance, e até na comédia. Ainda assim, nessa variedade de gêneros há uma incessante presença de elementos estranhos e curiosos (principalmente na primeira metade do filme) calcados na impressão de que algo de errado e ruim está prestes a acontecer, se já não estiver acontecendo. Nisso, a obra nos remete bastante à condução de Vivarium (2019).

Ações e circunstâncias que não conseguimos explicar passam a tomar conta das cenas. A tensão naquele ambiente caótico só aumenta, conforme vamos tomando consciência de que não sabemos de fato a intenção de nenhum daqueles personagens. Aqui, o medo do espectador não se concentra em possíveis sustos ou no horror visual. O “terror” psicológico – se é que neste filme podemos chamá-lo assim – acaba sendo muito mais um desconforto diante do incerto, do fato de não possuirmos nenhum controle do que está acontecendo e do que ainda irá acontecer, uma vez que a obra foge de clichês e abdica de qualquer previsibilidade. Da construção dos cenários e papéis de paredes, às interpretações caricaturescas dos atores, nos sentimos indescritivelmente incomodados por toda a situação que nos é apresentada.

O genial roteiro de Kaufman nos arremessa, como sempre, no limbo mais cruel, depressivo, sufocante e justificavelmente confuso do consciente humano. Mas, como também é de praxe do diretor e roteirista, não basta caminhar em terrenos delicados emocionalmente. É preciso colocar o espectador diante de um exercício mental, que o estimule a ligar os pontos e criar um próprio sentido para a narrativa e para a existência daqueles personagens. “Graciosas” pode muito bem ser a palavra que define histórias e abordagens que permitem interpretações diferentes, e a criatividade e Charlie Kaufman ao adaptar o livro de Iain Reid é algo que além de impressionar pela ousadia, nos força a querer assistir novamente para reforçarmos nossas teorias, ou mesmo desenvolvermos outras completamente diferentes.

Em uma história onde se questiona a noção de tempo, realidade e fantasia, o diretor traduz cinematograficamente a solidão, os sonhos, os desejos e até as inseguranças tão comuns de tantas pessoas que nos cercam. Provando mais uma vez que Charlie Kaufman dificilmente sai de forma, Estou Pensando em Acabar com Tudo se enquadra como um recorte fiel das possibilidades e dos caminhos existentes em nossas vidas (amorosas ou não), e utiliza de personagens acima de tudo muito bem humanizados para refletir nossos anseios da maneira mais original e heterogênea possível.