Crítica | Servant (3ª Temporada)

Servant (3ª Temporada)
(Servant Season 3)
Data de Lançamento no Brasil: 21/01/2022 (Apple TV+)
Criação: Tony Basgallop
Distribuição: Apple TV+

*Este texto contém SPOILERS da 1ª e 2ª temporadas de Servant.

Até que ponto conseguimos nos amar e amar nossos semelhantes enquanto a sanidade ou até mesmo a vida de alguém que amamos está em risco? Quão capazes de ignorar nossos impulsos emocionais e raciocinar corretamente realmente somos quando nos encontramos em situações extremamente opressivas que fogem completamente de nosso controle? Essas parecem questões já abordadas ao longo das duas primeiras temporadas de Servant, não é? Pois bem, a verdade é que são temáticas recorrentes da série, colocadas diante do espectador de forma cada vez mais distinta e inquietante. A já amada série da Apple TV+ faz questão de abraçar ainda mais forte o suspense, tão bem desenvolvido em seus primeiros 20 episódios, partindo para uma terceira temporada disposta a ousar, inovar e atormentar seu público sem perder sua linha narrativa rígida e consistente, traçada desde que nos apresentou seus personagens e mostrou a que veio.

Após três meses desde a traumática visita de tia Josephine e o misterioso retorno do bebê Jericho ao seu corpo, Leanne, cada vez mais integrada à família, se vê simplesmente paranóica em relação aos acontecimentos. Enquanto isso,  Dorothy, Sean e Julian tentam tocar suas vidas e seguir em frente, acreditando que dias melhores estão por vir. Quando a família resolve fazer uma viagem à praia, junto com Veera, a nova namorada de Julian, Leanne, temendo que o culto esteja vindo atrás dela, se recusa a deixar a casa dos Turner. Em pouco tempo, a família irá descobrir que a tão almejada paz parece estar, na verdade, longe de se concretizar.

Nesta temporada, a série deixa de lado boa parte do destaque atribuído anteriormente a Julian (principalmente na primeira temporada) para focar na força da relação feminina existente na casa. Se Leanne, em sua intensa personalidade, nos prova da forma mais explícita possível o quão tênue pode ser a linha que divide um anjo de um bruxo, Dorothy se mostra dividida entre seus deveres maternos e seus objetivos profissionais. Sean, por sua vez, revela seu lado mais humano e altruísta, o que o ajuda a descarregar as frustrações dos segredos que mantém de sua esposa, mas ao mesmo tempo faz com que se coloque distante dos problemas familiares e matrimoniais que se evidenciam no caminho.

Pode-se dizer que a terceira temporada é a que mais se dedica em desenvolver a consciência e a visão de mundo de Leanne, incluindo todo o processo de amadurecimento presente neste contexto. A mais peculiar e enigmática personagem da série é quem mais enfrenta mudanças aqui, indo de paranóica a uma confiante entusiasta, e, posteriormente, a uma líder nata disposta a fazer o que for preciso para proteger os Turner, inclusive da verdade. A brilhante atriz Nell Tiger Free não só continua roubando a cena e nos hipnotizando com seus olhares lancinantes e sua limitada expressividade corporal, como também expõe, com facilidade, em seus traços faciais todos os sentimentos experienciados por sua personagem em uma montanha-russa de fortes emoções.

Servant ainda é uma obra sobre o que fazemos ou somos obrigados a fazer para preservar o bem-estar e o equilíbrio mental e físico daqueles que amamos. De maneira sólida e profunda, repleta de surpresas, incertezas e de uma constante sensação de que algo horrível está prestes a acontecer, o roteiro da série (agora mais compartilhado e surpreendentemente mais assertivo do que nunca) prepara cuidadosamente o solo de suas reviravoltas. enquanto ainda encontra convincentes saídas para as astuciosas encruzilhadas em que coloca seus personagens. A série se encontra aqui no momento mais seguro e confiante de sua trajetória, trazendo nesta temporada cenas realmente fortes e impactantes aos olhos dos espectadores, que realmente se importam com os personagens.

Se na segunda temporada Shyamalan trouxe a criativa diretora francesa Julia Ducournau, nome por trás dos premiados longas Raw (2016) e Titane (2021), que comandou os dois primeiros episódios com perfeição e uma identidade própria, essa foi a vez da ótima dupla austríaca Veronika Franz e Severin Fiala, responsáveis pelos formidáveis Boa Noite, Mamãe (2014) e O Chalé (2020). Eles aparecem na direção do penúltimo episódio como convidados especiais, trazendo toda a tensão através dos enquadramentos únicos que sabem construir como ninguém. De forma geral, a série continua impecável tecnicamente, com aspectos audiovisuais realmente impressionantes. Boa parte desse crédito se deve, inegavelmente, ao compositor Trevor Gureckis, por um trabalho mais uma vez primoroso ao lado de Shyamalan, expressando sentimentos e pressentimentos através de harmonias sutilmente dissonantes e assimétricas que auxiliam diretamente no desconforto do espectador.

Para muito além das respostas prontas e distante da repugnante necessidade/obsessão de muitas séries em simplesmente “não deixar seu espectador menos engajado escapar”, construindo situações previsíveis que adoraríamos ver para saciar nosso puro e superficial ego, Servant conhece muito bem seu próprio público. A séria confia que se este continua acompanhando tal caminhada, é porque espera exatamente que ela faça o que faz de melhor: ser imprevisível e misteriosa em seu ritmo diferenciado e em sua praticamente única locação, além de criar mais questionamentos do que apresentar soluções. Inclusive, é mais do que recomendado assistir, antes de iniciar a terceira temporada ou mesmo depois de concluí-la, o valioso conteúdo bônus disponibilizado na plataforma de streaming, no qual  o produtor executivo e showrunner M. Night Shyamalan discorre um pouco sobre o processo de produção da série. O diretor comenta dos elaborados storyboards e planos longos à direção de elenco, além de seus segredos de bastidores e a forma como contrata e trabalha com sua equipe por trás de cada episódio.

Há mais de dois anos carregando o que de melhor existe do terror psicológico na televisão, a virtuosa série Servant, prezando pela qualidade de sua trama e sem a preocupação de agradar, demonstra total e plena capacidade de continuar angustiando seu público com sabedoria e sobriedade por pelo menos mais uma quarta e última temporada. O faz utilizando-se de suas regras, conceitos e objetivos para tecer tramas interessantíssimas sobre amor próprio, responsabilidades, individualismo, solidariedade, desconfiança, e a conhecida e velha busca por um ídolo, Deus ou herói que possa nos confortar e/ou nos salvar de nossos pecados.